domingo, 23 de agosto de 2015

Um Mestre da Liberdade

 

Os grandes males produzem grandes bens. Não há dúvida de que o bem é, por sua natureza, difusivo. Quando um escoteiro realiza sua boa ação do dia, ela como que se alonga no tempo pela força do seu exemplo e adquire uma permanência. Que de um ação má, no entanto, decorra algo bom é algo mais difícil de entender. No entanto, a história da Lituânia nos dá uma amostra de que isso não é uma mera possibilidade, mas um fato. No século XIX, a Lituânia já era uma grande potência. Não estava, todavia, sozinha no Olimpo imperial, e a Rússia, o gigante vizinho, dominou-a. Por medo à revoltas, Catarina II decidiu que toda profissão liberal estaria a partir de então proibida. Toda regra, no entanto, tem exceções, e é exatamente nelas que mora o sinal distintivo do imperialismo russo pré-revolucionário. Catarina II permitiu que houvesse sacerdotes na Lituânia, porque, embora o imperialismo russo não admitisse rivais políticos, Catarina II não quis deixar o povo sem a sua liberdade mais fundamental. O pressuposto era de que, sem religião, a cultura popular descambaria de tal modo que a Lituânia, em vez de ser uma conquista, seria somente um peso morto. Desprezar as sabedorias é sempre um tiro no pé.

Encurralada contra a parede, no entanto, a Lituânia, como um urso surpreendido em pleno sono pelo caçador implacável, não se deixou abater, mas reagiu. O governo de Catarina II era pessoal, vale dizer, não era baseado em leis. Embora a língua do país tenha sobrevivido graças ao contrabando de livros, o russo era o idioma da burocracia. Esse absurdo, todavia, não saiu do andar de cima da país, o que franqueou oportunidade para que, além de publicações de maior vulto, fizessem um jornal que atingisse as camadas médias e populares. E toda essa Torre de Babel aconteceu sem que houvesse sequer uma lei sobre o assunto, o que assemelha deveras a Lituânia ao Brasil, onde as leis sobre linguagem nunca prosperam definitivamente. Até aqui, porém, a luta lituana pela liberdade é passiva. Não havia movimentos de emancipação política.

O domínio russo, todavia, foi substituído pelo polonês, cujo caráter era diferente. Já havia a impessoalidade das leis, e a cultura lituana voltava a se fazer sentir. O terreno estava preparado para que surgisse um herói da nação. De um lado, havia um oponente tão hediondo como é uma máquina estatal que não visa o bem comum como algo distinto do individual. De outro, havia um povo que começava a vislumbrar o que é a liberdade, e como ela foi perdida em meio às guerras nacionais. E, acima de tudo, havia uma tampa sob o céu da Lituânia que ameaçava deixá-la completamente no escuro: a revolução russa poderia se espalhar pela região. O perigo, portanto, que faltava à época de Catarina II agora estava presente. O movimento lituano, no entanto, não é uma mera reação ao bolchevique, mas é antes a afirmação de que, se uma sociedade não é livre, ela jamais poderia aprender a fazer o bem. A liberdade então defendida, porém, não é um valor em si, mas sim a expressão jubilosa de que a Lituânia não tem outros inimigos fora o erro materialista. Do lado soviético, o grito pela liberdade tampouco deixou de ser ouvido. Mas a diferença é que a liberdade dentro dos quadrantes marxistas é o medo de tomar decisões duradouras e não um reconhecimento do bem, que leva, por sua vez, a uma difusão universal da bondade. O mestre da liberdade desta época é Dovydaitis, que fundou, além da Revista do Futuro, uma Universidade democrática.

Quando, todavia, o urso quase alcançava a luz que brilhava no exterior da caverna, eis que o caçador investe novamente. A Lituânia já havia passado pelo domínio czarista e polonês, mas ainda lhe restava enfrentar a aliança soviético-alemã. Se nas duas primeiras, a perseguição aos intelectuais fora simplesmente por medo de revoltas, agora o laicismo é quem dá as cartas. As catedrais são transformadas em museus. O ateísmo é ensinado nas escolas. À liberdade de expressão mandam-lhe calar a boca. E o maior herói nacional, o já velho Dovydaitis, é enviado a um campo de concentração onde, depois de contagiar sua alegria a seus companheiros de infortúnio, é fuzilado por ser coerente com a fé de Roma. Peixeira Vermelha - Samico

Nessa época é possível encontrar duas formas de resistências. A primeira era baseada na mera tentativa de administrar a sobrevivência, e só digna de menção porque ela não compactuava com a ditadura comunista. Isso é sempre possível mediante o contrabando de material proibido. Alguns, por exemplo, que cruzavam a fronteira, levavam consigo, em microfilmes, notícias para a mídia ocidental e outros, em idade militar, formavam milícias no interior. A segunda era formada por gente que saía às ruas no aniversário do pacto Ribbentrop – Molotov, assinado em 3 de agosto de 1939 para pedir mais liberdade, arriscando a própria pele. Um desses valentes, Tsys, foi preso por participar num desses motins, e o seu emprego foi para o espaço. Para sustentar a família, ele iniciou o primeiro jornal livre desde a ocupação soviética.

O bem realizado por Dovydaiitis e outros não podia, assim, ser desfeito. Ele conferiu à população lituana uma identidade que não só sobreviveu à hegemonia política soviética como também logrou destruí-la como um rio que, passando por cima das pedras do seu leito, desgasta-as pouco a pouco. Na década de 90, os lituanos pressionaram pela perestroica, e, depois de uma breve incursão soviética a que o povo resistiu, celebraram a liberdade cantando e dançando. Alguém, é claro, duvidará que Doyvidaitis tem alguma a ver com a emancipação que aconteceu depois de seu falecimento. No entanto, assim como um taco de sinuca é a causa da dança de várias bolas do outro lado da mesa, da mesma maneira um primeiro impulso rumo à liberdade pessoal de centenas de indivíduos é o que leva, mais adiante, à autodeterminação de uma país inteiro. Ainda que ainda quebrem o taco, o movimento iniciado por ele não tem fim.