sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Um Pedaço da Memória de G. K. Chesterton








O desejo mimético mostra que ao tentar destruir o outro, o que queremos é impedir que ele conquiste o bem cuja beleza nos encantou. Não se trataria, portanto, de uma má ação, mas sim de um meio imprescindível para a eficácia. Há, porém, uma maneira de falar mal que é como música. E uma dessas canções oníricas, que termina bem depois de um início estranho, é a que canta Chesterton quando diz que os americanos são antiquados. Empunhando a espada da ironia, ele assim corta os seus leitores em dois: só aqueles que entendem que o próprio Chesterton defende causas tão veneráveis quanto o começo do mundo riem. Ser antigo é absolutamente necessário. É uma delícia olhar para trás e rememorar a época em que a atenção da mídia estava voltada para um só ponto. E aí estava justamente o próprio Chesterton, o que mostra não ter ele cedido à falsa humildade de não falar de si mesmo em público. Ao contrário do que alguns acham, Chesterton é tão extrovertido quanto Mr. Micawber.
 
Mas esse passado, como a origem girardiana, é violento. Nele o autor do relato se lembra de um empregado de um jornal americano cujo estilo era diferente do seu. Segundo Chesterton - o duplo que é ao mesmo tempo narrador - a América é a terra da propaganda, e isso influenciaria a redação dos periódicos. Alguns acham que isso deveria ter sido dito literalmente, mas a letra não importa. Sem nenhuma dúvida, ele identifica os americanos com os chineses, uma vítima antiga do Império Britânico. Surge, porém, uma saída para a crise mimética. Chesterton admira Nathaniel Hawthorne pela sua técnica e Walt Whitman pela sua força e sinceridade. Eles, porém, não são conhecidos pelo jornalista cogitado, cujo modelo é antes algum autor famoso de comerciais televisivos. Se a mediação externa não é comum, os duplos se aproximam... e o combate começa.

Contra as ideias contidas nos jornais, Chesterton afirma que o homem é livre e que toda a futurologia é uma inversão da prudência e uma selvageria. Isso é evidente, mas alguns se preocupam com a previsão do PIB, cuja cientificidade é atestada pela precisão numérica. Eu também me preocupo com isso, já que menos dinheiro pode significar menos lazer e menos cultura. E a precisão matemática, que é o prêmio da disputa, cresce até ocupar todo o campo da visão. A ciência não é infalível, mas algumas vezes ela posa como se fosse. E, para conseguir uma aparência de credibilidade, ela se adorna com o atributo da quantidade exata. Não importa qual é a diferença específica de um átomo de carbono, uma questão sobre a qual é impossível falar por mais de um minuto. O que importa é quantos elétrons ele pode ter, e isso qualquer pessoa prática entende. Essa precisão, no entanto, pode ser desviada para fins sinuosos, como quando se tira uma estatística da manga para provar que o número de ateus tem crescido. Isso, obviamente, não leva em conta a tendência indígena ao drama e a portuguesa ao fado. Que Deus tenha morrido é algo triste e belo, e confere uma aura de Fernando Henrique Cardoso a Jair Bolsonaro.

Toda essa batalha, no entanto, pode ser vazia e terminar numa festa. De fato, Chesterton não tem certeza sobre a verdade do relato do jornalista. O objeto da discórdia, porém, existe. Ele percebe e o diz com toda a clareza: não há identidade entre o que ele sabe que a ciência é desde há muito tempo e o que vai impresso com as letras do prestígio desde outro dia, quando Gutenberg inventou a imprensa. No entanto, é essa imagem falsa que se espalha, e a democracia pode ser enganada. Chesterton termina com elegância e faz com que o clima volte à tranquilidade. Ele já tinha feito algo parecido ao forjar um adversário hipotético como quem não deseja entrar em conflito com nada que seja mais que um pesadelo. Agora, o seu toque de mestre é se identificar com a sua vítima de tal maneira que ele se torna o seu modelo através da maioridade do desejo. Ele também prevê um futuro - não só, porém,  como quem faz ciência, mas sim com toda a intensidade de quem enuncia uma profecia terrível. Todavia, por trás da seriedade de uma maldição, lateja sempre um afeto.

"Eu acredito que a terra gira em torno do sol; mas eu não mais acreditarei se Thomas Edison afirmar que aço e concreto girarão em torno da terra. Se você nega o que os homens sabem à luz do que eles não sabem, eles simplesmente resistirão à ciência de uma vez por todas; e a grande obra do século XIX será perdida por séculos."