domingo, 27 de março de 2016

A Soberania Impossível do Alface e de Outras Irrelevâncias


Trazer à baila a repetição de um argumento ao longo de toda a história mostra que vários tiveram uma mesma convicção inabalável. Ao contrário do que julga o Evolucionista Ideal, não se trata de um preconceito psicológico comum,  mas sim de um juízo indispensável à natureza da cidade. Por outro lado, há opiniões inovadoras como a de que o acaso é a força que provê a matéria da seleção. O elemento comum entre o boato corriqueiro e a descoberta científica não é outra coisa que o mistério das incertezas. Porém, desde que a matemática tomou o lugar das humanidades, nenhuma segurança é possível fora da economia, o que destrói o orçamento do Ministério da Educação. De fato, não há dúvida de que investir na infraestrutura necessária às indústrias é algo mais promissor do que atribuir recursos à busca desinteressada pela verdade.

Uma certeza, no entanto, é sempre incompatível com as demais. O boxe, a propósito, é fundado nesse princípio. E, ao mesmo tempo, é uma demonstração de que ele é a glória da regra. Há várias maneiras espetaculares de derrubar o adversário. Dar-lhe, no entanto, uma cotovelada enquanto ele está caído no chão seria um crime. Uma sociedade, todavia, em que o progresso científico é a única verdade não permite nenhum esporte saudável. Qualquer objeção baseada na filosofia aristotélica é vista como algo retrógrado, que, ao invés de levar adiante, empurra para trás. O acúmulo de dados físicos é o primeiro passo para a burrice, ainda que elas sejam atestadas por Pasteur e outros nomes não tão respeitáveis. O segundo é delegar o pensamento ao consenso. O terceiro é querer refutar Descartes no seu extremamente ordenado campo de batalha.

Depois desse Filósofo, o progresso nada mais é do que um acúmulo de contas concretas, o que não traz consigo necessariamente o lapidar imprescindível da imaginação. O homem ou é um ser deslocado no mundo como um extraterrestre ou é um imperador cuja púrpura foi surrupiada. As duas concepções são bem parecidas, com a diferença de que, na segunda, há um delito primordial. A teoria da antropogênese do efeito estufa é compatível com ambas as hipóteses. O seu silêncio quanto ao furto, no entanto, embora falso, é uma cotovelada indevida, porque coloca o João da Esquina na posição de réu por um delito que ele não cometeu. Sempre é possível dizer que o Evolucionista Ideal não é o culpado pelo aquecimento global, embora o seja pela morte de uma multidão de vegetais indefesos. Isso, porém, seria pressupor uma consciência que, cientificamente, tem tanta entidade quanto a estratégia bélica de Chamberlain.

A felicidade do vegetarianismo depende da metafísica rigorosa segundo a qual a responsabilização é exclusivamente individual. O fato óbvio, porém, é que, se é impossível fazer um omelete sem quebrar um ovo, quanto menos um banquete. É impraticável adaptar-se sem dominar o meio, e isso faz com que seja imprescindível carregar pedras, esforço para o qual o alface não provê a quantidade indispensável de calorias. Sem dúvida, o avião que passa como um pombo da paz sobre milhões de cabeças indefesas teria sido inventado mesmo se as sinapses de Santos Dumont fossem estimuladas somente por alfafa. O que, porém, ele comia ou deixava de comer não é importante, porque são atos particulares.

Isso é um desvio político que qualquer cidadão tem o dever de denunciar.  Se os discursos parlamentares visam mais às leis sobre questiúnculas do que à soberania, o país está fadado ao fracasso. Há, no entanto, algo que é ainda mais urgente do que a autonomia. Se alcançasse o palanque um grupo que, por falta de uma palavreado decente, apelasse para as baixarias do baixo ventre, os amigos de Fernando Haddad teriam a reputação ilibada da toga. Como isso não convence ninguém, o próximo meio é usar a violência, expediente em que os senhores do baixo clero não insistem mais porque o alto clero ainda têm paciência o suficiente para dedicar-lhes a imprescindível conversa fiada. O liberalismo desenfreado, de fato, é a causa do terror. E se, por acaso, alguém ainda achar que tratar de procriação é um privilégio inexistente dos fiscais de alcova, aí vai mais uma razão gráfica.

Camões, como se não bastasse ser poeta, era também um herói militar, isto é, alguém que arriscava a vida pela pátria. Mesmo, no entanto, sendo um exemplo de civismo, ele arrumava tempo para cantar as loas de de uma musa que poderia muito bem estar presente por seus passeios públicos por Lisboa. Ele, no entanto, deixava-a em casa cozinhando e se retirava para alçar a sua lira às alturas épicas. E reclamava como poucos do mundo inteiro, que estava entre ele e sua amada. Ainda que seja muito belo, isso não é discurso parlamentar. Se os hábitos privados são esfriados pela sua exposição pública, a infecundidade toma o lugar das famílias. O próximo não é um sonho, mas sim um pesadelo já planejado e executado. As armas tomam o lugar da retórica, e a paz é derrubada junto com as torres da liberdade.

domingo, 20 de março de 2016

O Milagre do Trem

O Professor Gerardo Furtado  tem duas opiniões acerca desse costume imemorial que é a conversa fiada. A primeira é que ela apenas manifesta o quão precário sempre foi o raciocínio humano. A segunda é que, como um bate-papo não admite argumentos de autoridade, o seu aumento à medida que o tempo passa levaria a uma maior confusão, que por sua vez traria consigo o emburrecimento de trocar o fato pelo achismo, e esse efeito se acumularia de geração em geração. É um ponto de vista um pouco estrábico. No entanto, valendo-se do poder do criador sobre as criaturas, ele interpreta as suas palavras e se adianta a dizer que seus dois olhos visam mesmo a um só foco. Assim, cabe a nós entender a unidade do oráculo gerardiano e desvendar o mistério de como a conversa fiada não deixa e talvez deixe a galera mais estúpida. Para Otto Lara Resende, um infatigável praticante do esporte na modalidade epistolar, jogar conversa fora era uma forma de literatura. De fato, um de seus destinatários atestava: “os amigos que tiveram o privilégio de receber as suas cartas julgam que o melhor do Otto estava na incontinência do espírito do missivista tanto quanto no fulgor da palavra e na comunicação direta desse que foi quem melhor soube conversar no país e no seu tempo.” Não que se propusesse isso como um fim imediato, mas a coisa se desenvolvia de tal modo que, para dizer o que queria, ele utilizava recursos que a musa só franqueia aos valentes que, assim, são alçados quase a contragosto ao estado da arte. O ponto decisivo, assim, é saber se a literatura - isto é, a experiência transformada em ficção - não contribui para o descobrimento de verdades tão verdadeiras quanto aquelas que o Prof. Gerardo descobre no seu Pasteur e quejandos. A evolução, embora doutos julguem ser uma dessas iluminações, é um disparate mais inverificável que todas as estórias de fantasmas juntas e, portanto, não pode ser a pedra-de-toque da questão. Da mesma maneira, a infinitude do universo é uma elucubração tão gigantesca que tampouco serve. Resta-nos ficar com algo que ninguém duvida ser muito científico e averiguar se ele tem alguma relação com a literatura: o método. Essa mania acadêmica, sem a qual qualquer cientista passaria muito má impressão, nada mais é do que uma tentativa ordenada de verificar uma hipótese. Dessa maneira, se alguém dentre os antigos tivesse a ousadia de não fazer nada e conjecturar que a terra é esférica, ele poderia sair por aí divulgando a sua informação e exigindo que as pessoas acreditassem na sua autoridade. Alguém, porém, sempre pode duvidar. Então, ele poderia mostrar, na lua, o corte arredondado. Se o que produzia a imagem era o nosso planeta, não haveria incertezas de que a razão estava com ele. O método ou caminho que o levou a tese poderia ser replicado por qualquer um, o que daria foros de consenso à sua opinião. Tudo isso, todavia, depende da suspicácia, uma faculdade que Otto, como bom mineiro, trazia do berço. Ciência, com efeito, é uma certa observação ativa do real. E para que dê algum resultado é necessário que se proponha a responder a uma pergunta bem delimitada. Isso, porém, não é possível se o que predomina é a ingenuidade de achar que tudo é assim ou assado porque é o que parece. Suspeitar, no entanto, que as aparências enganam é um expediente da imaginação. Otto, por exemplo, estando hospedado numa pensão belga, desconfiou que o líquido vendido dentro de uma garrafa de água mineral potável fosse, na verdade, tirada de um bica improvisada que, por um momento, só existiu na sua cabeça. Ele, então, marcou o frasco para verificar se, da próxima vez, seria o mesmo. Assim a pulga atrás da orelha seria confirmada, e surgiria a segurança de que o dono do estabelecimento ganharia dinheiro à força de passar a perna nos clientes. Se isso não é, exatamente, o que um biólogo faz em seu laboratório, há uma semelhança inegável. Ambos, munidos de um palpite, tem que arrumar um meio de constatar a sua procedência. Existe, todavia, algo que é superior à ciência, embora não tenha o atributo divino da verificação laboratorial. Quando, num acidente ferroviário que aconteceu próximo de Barra do Piraí, vários passageiros morreram, mas Otto sobreviveu, ele não diz expressamente que isso foi por milagre. Os mineiros, por um excesso de prudência campesina, desconfiam que o acaso também possa existir. No entanto, ele deixa consignado que invocou a Virgem Maria. Que a vida humana não dependa de Deus, mas só da precariedade de invenções como esses e outros sistemas de transporte é algo tão exageradamente trágico que qualquer um afirmaria ser essa hipótese tão real quanto um sonho ruim. No entanto, alguns adoradores cegos da Nature imaginam isso e acham estar com a verdade só porque não estudaram filosofia o suficiente para discernir onde começa e termina a autoridade dos colegas do Professor Gerardo. Ela começa e termina no trem descarrilhado, e é tão certa e segura quanto uma caveira.









terça-feira, 15 de março de 2016

A Beleza do Faustão


A festa da democracia ainda nem começou, mas os preparativos são promissores. O ex-presidente Lula disse que só saía de sua casa algemado, como qualquer outro meliante. Como, porém, esse tipo de passeio não orna a reputação de ninguém, alguns poucos petistas foram às ruas para demonstrar a sua adesão inquebrantável ao anjo caído. E, numa de suas investidas, invadiram uma propriedade da família Marinho que está no nome de um estrangeiro. Eles teriam, mais uma vez, desmascarado a Rede Globo. Não haveria diferença entre conglomerado televisivo e aquele que, como economista, é um bom metalúrgico. Isso, obviamente, é papo-furado. A empresa carioca, no entanto, tampouco é uma vítima inocente.

Ela mesmo admite já ter feito das suas ao apoiar o regime militar. No entanto, o delito cometido pela Rede Globo não é o ter defenestrado os marxistas e afins, mas sim o mesmo em que incidem, quotidianamente, milhares de brasileiros. Um membro dessa preciosa raça acontece de tossir ao ar livre, no meio da rua, num dia em que o vento é impetuoso. Ninguém o recrimina de nada, mas, se alguém ameaça fazer cara feia, ele pede desculpas. Quando, porém, essas delicadezas passam a ser demasiado oficiosas, algo maior não vai bem. Se a Rede Globo sente muito por ter apoiado a revolução de 1964, o melhor seria esclarecer que, naquela conjuntura, não podia fazer mais. Não é uma bela ação, mas seria pior ainda a omissão. A grande confusão seria achar que, por alguém ter pedido desculpas por algo inocente, ele deveria estar arrependido do ato em si. Pedir desculpas por tossir, porém, não chega a ser um delito, mas somente uma má-compreensão da etiqueta. O crime da família Marinho é o que está por detrás dessa aparente questão menor.

Assim como acontece com a casa invadida, parte do apartamento usado por Lula tem como proprietário um terceiro. Isso, por si só, significa uma simulação, que, no entanto, é inócua tanto quando realizada pelo líder petista como quando feita pelos barões de Jacarepaguá. Porém, ao contrário do que acontece na esfera privada, a simulação governista é um indício de que o dinheiro para comprar as propriedades vieram de algum meio que seria politicamente incorreto admitir. É bastante diferente do que acontece com a TV Globo. Os petistas gostariam de passar uma imagem de honestidade, e a empresa midiática, há já alguns anos, esforça-se para ser conhecida pela sua sem-vergonhice. Há algo mais indecoroso do que vender a intimidade de uns coitados cujo único talento é a mediocridade de não ter nada para oferecer ao público além da indecência? O ato nefando da TV Globo é este: ela inverteu o pudor. É vergonhoso lucrar com a privacidade alheia, mas ninguém em sã consciência se envergonharia de possibilitar a festa que a ditadura do proletariado teria impedido.