domingo, 20 de dezembro de 2015

Pangaré Alado e Sua Audição do Estudo em Si Menor de Fernando Sor



Há várias maneiras de tocar violão. Uma delas é displicentemente pegar o instrumento nos dias de pagode para acompanhar algum cantor amador que quis desenferrujar o gogó. Outra é estudá-lo para dominar a técnica de tal maneira que, quando o artista dá a graça de uma canja, todos ficam embasbacados com o movimento rápido de seus dedos, e se esquecem da música. E tudo oscilaria entre o improviso do serviço e a vaidade do brilho se não houvesse quem colocasse o talento a serviço da harmonia até, depois de muitos ensaios, deixar que ela encha todo o ambiente de serenidade. Isso é o que faz com destreza o médico piauiense Marcos Leal, já radicado há quatro anos no Rio de Janeiro, com um simples e muito belo estudo em Si menor de Fernando Sor. Ele não é um profissional da música, mas a precisão cirúrgica aprendida na faculdade não foi em vão. Ela faz com que o instrumento planja de tal maneira que qualquer um que tenha sido mandado embora do emprego e ficado sem rumo, andando para lá e para cá por uns dias, sinta-se identificado com o vai-e-vem da melodia.

Serenidade de fato é só o fim. O que esse conjunto de sons provoca é a leveza instável de andar de barco no meio do mar, com o vento forte levantando as ondas, rumo a uma ilha paradisíaca e inexplorada. Quando então o barco chega, não há ancoradouro, e ele tem que rodear a costa em busca de um local seguro. Eis aí a síntese de movimento e repetição que a música traz consigo. O trajeto do barco se aproxima e se distancia da orla, perscrutando suas paisagens desiguais para em vão completar o círculo. Mas sobe e desce sempre no mesmo ritmo. Depois de dar uma volta inteira e não encontrar nada, o destino parece ser, quando a melodia é mais terna, o fracasso de retornar à praia de origem. No entanto, eis que de repente tudo é calma, e a paciência conquista seu prêmio. O barco lançou âncora, os tripulantes desceram, e seus pés tocaram a terra firme sob o azul diáfano de um céu sem limites.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Peleguismo e Outras Maravilhas

Chuva, Vapor e Velocidade - Turner
Viver no Brasil é constantemente ser lembrado do que julgo ser um uma opinião plausível: o poder é como a barba. Assim como esses pelos que teimam em crescer ainda que sejam sempre raspados mostram que a natureza humana é caprichosa e tenaz, assim também algum governo nunca deixa de ser exercido, ainda que contra todos os jornais. Como a barba, o poder é um privilégio que nem todos têm mas todos respeitam. Há gente, no entanto, que se acha capaz de dizer ao povo quem é a autoridade, como se ele fosse um dândi que precisasse de um espelho. Nessas últimas manifestações, algumas mídias virtuais afirmavam que sicrano, legitimamente posto no seu cargo, não manda nada. A natureza, no entanto, não tem a obsessão pela unidade. É possível que haja, ao mesmo tempo, vários caciques para o mesmo assunto, e improvisar um tribunal para decidir quem manda e quem tem juízo é mera retórica.  Ockam diria que não convém complicar o que pode ser simples. A democracia, porém, é necessariamente múltipla e diversa.

Uma forma mais sutil de minar o poder é alardear que o seu discurso é desconexo. Se dom João era realmente a figura que pintam, ele devia frequentemente não falar coisa com coisa. A maior parte dos desentendimentos, no entanto, acontecem mais por deficiência do ouvinte do que por loucura do falante. É verdade que a arte moderna tem se esforçado para contradizer isso, mas o máximo que ela consegue provar é que uma representação da própria singularidade requer uma apreciação um tanto singular. Outro fator de incompreensões, mais grave, é o desprezo por um dos axiomas do bom senso: o de que tudo tem a ver com tudo.

A capacidade de autocrítica, por exemplo, está relacionada com a política. Bill Clinton, um nome que foi democraticamente enterrado e sepultado, era uma espécie de gênio da reputação. A fama, de fato, é algo muito volátil, mas gente como ele tem a malandragem necessária para se sair bem mesmo quando comete um erro. Quando alguns de seus subordinados errou o alvo e, em vez de uma fábrica de armamentos químicos, acertou uma indústria farmacêutica, não houve nisso nada mais do que uma cochilada profissional que a técnica se incumbiu de agigantar.  Alguém deveria estar atento, mas o corre-corre do quotidiano traz consigo essa possibilidade terrível. A rigor, portanto, Bill Clinton não cometeu nenhum crime, mas mesmo assim, descobrindo no fracasso uma oportunidade eleitoral, mostrou-se profundamente humilde e pediu desculpas.

O sobe-e-desce da democracia, por sua vez, está ligado com a imitação. Os adoráveis ingênuos diriam que Bill Clinton assumiu seu erro porque tinha a intenção de tomar sobre si a culpa dos outros e ser um bode expiatório voluntário.  Eles provavelmente estão certos, mas a fria prudência recomenda considerar a hipótese de Bill Clinton ser tão vaidoso quanto esses atores de cinema que compensam a falta de sentimento com um penteado bacana. E a única maravilha que esses obcecados pelo holofote aceitam é o próprio umbigo. Consta, porém, que isso estará de moda por algum tempo ainda, porque não é difícil extinguir o assaz decalcado discurso politicamente correto, algo tão próprio da humanidade, essa raça de macacos com um sentido mais refinado de imitação.  Embora a língua não tenha sido feita para a retórica, isso infelizmente não traz consigo que os que abusam dela sejam linchados. Mas até nisso há algo de bom. É tão natural quanto o poder e a barba que o atual governo brasileiro às vezes acerte sem saber por quê. É o caso, por exemplo, das verbas que ele destina aos cientistas políticos e comentaristas pelegos. O profissionalismo com que eles defendem o indefensável, jogando a culpa de alguns num inexistente sistema neoliberal, não deixa de ser verdadeiro. As faltas não deixam de ser coletivas porque alguém, solitário como qualquer minoria, resolveu, num dia cheio de raios e tormentas, dar ouvidos a uma serpente.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A Condescendência dos Gigantes

 

Uma turma de arruaceiros vai até o centro da cidade e resolve pichar o prédio público mais importante da cidade. Antes eles chegariam de madrugada e, entre uma risadinha e outra, fariam o humor contra o qual não há resposta porque não é necessária nenhuma. Hoje, felizmente, o anonimato foi deixado de lado, e bastaria que os jornais comentassem o fato para que todos vissem que por trás da piada se escondem os mesmos pedantes de sempre, que identificam liberdade com o assassinato. Se a população de São Paulo não tomar nenhum atitude, a mensagem é clara: o jornalismo também está morto. Se a influência na opinião pública não for possível agora, quando há claramente uma maioria que é a favor dos bebês, é porque a única razão de ser da Folha de São Paulo e do Estadão é uma chatíssima crítica anti-democrática.

A época do periodismo talvez já tenha passado. Foram-se os dias em que o pai, antes de sair para o trabalho, sentava-se para se informar sobre que está acontecendo no mundo através do jornal. Se ainda há quem resista bravamente, saiba que somos um grupo cada vez menor porque a simplicidade tende a tomar conta de tudo. É muito complicado averiguar, dentre os vários colunistas, quem emitiu a opinião certa. No entanto, no debate que ultimamente opõe os dois lados do Brasil, não é difícil encontrar a verdade. Os que dizem que a solução nacional está numa visão pragmática dos problemas claramente deixam a desejar. O sr. Felipe Zanisque, cidadão comum,  não precisa de fato de uma teoria para entender que o melhor não é andar de carro movido a petróleo. O mais produtivo seria trocar o ouro negro pelo combustível feito a base de cana-de-açúcar. Isso seria mais barato, o que é eminentemente uma razão prática. No entanto, esse sendo comum se apóia na tese de que a pobreza é preferível à riqueza, e isso é uma opinião que só faz sentido sentido dentro de uma teoria da família. Em escala nacional, sempre há um gênio que propõe emitir mais moeda para tornar o país mais rico, como se o que interessasse fosse o ouro negro, branco ou amarelo, e não a sua utilidade.

O bravo que seguisse lendo os jornais, todavia, poderia até chegar a essa conclusão, mas o caminho não seria facilitado pela imprensa, que virou uma vitrine onde cada um só se preocupa se a sua opinião é bonitinha. E o mais bonitinho seria não pensar, mas deixar-se levar pelas modas, que, quanto mais científicas, melhor. E a ciência verdadeiramente resiste tenazmente, se não como os solitários adeptos do periodismo, ao menos como uma manada. Dobrar-se ao consenso científico, porém, é como ser um gigante que aceita o desafio de um pigmeu. E o pgimeu em questão, em vez de buscar as origens, preocupa-se antes de mais nada com selecionar os fatos principais da parte que lhe cabe no latifúndio acadêmico. O perigo dessa condescendência é que algumas fazes um anão acredita nas bravatas que lança contra os gigantes.

Uma dessas bravatas é a de que a ciência explica tudo. No entanto, se o fatos não foram bem selecionados, a teoria pode muito bem servir a um propósito prático, mas dificilmente seria capaz de dar conta de toda a experiência, aí incluída também a dos pigmeus e a dos gigantes. O evolucionismo já é tão batido que não vale mais a pena insistir no assunto. Ao invés dele, tomemos como exemplo a ideia bastante difundida de que não existem culturas inferiores e superiores, mas todas seriam pedras preciosas que a Unesco deveria preservar. O principal fato selecionado aí é o pigmeu. Se a coisa é feita por um homem, seja ele quem for, isso basta para receber o carimbo de sacrossanto. Os homens, porém, por mais bravos que sejam, são capazes de erros como o do periodismo ou o de querer superá-lo com uma técnica, que, ao fim e ao cabo, também será caduca.

João e o Gigante

sábado, 17 de outubro de 2015

A Causa do Elefante

 

Alguns amam platonicamente o pensamento, enquanto outros o utilizam. Muitos acham por exemplo que fazer ciência nada mais é do que refutar os consensos da comunidade acadêmica. Mais adiante, todavia, alguém os refutará e assim por diante numa história sem fim. Isso é tão proveitoso quanto brincar de carrossel. Outros, um pouco diferentes, acham que a única utilidade possível é prática. Os marxistas, coitados, acham que as leis de herança são feitas não por uma questão de justiça, mas sim para, na prática, perpetuar as diferenças de classe. Essa sua doutrina tem o mesmo efeito que entrar numa casa e roubar o cofre. A diferença é que, dita por um professor, ela tem os foros da pedanteria, e, realizada por um ladrão, ela é motivo de cadeia.

Embora o bom senso não recomende a cobiça dos bens alheios, andar de carrossel é uma atitude muito humana. Nenhum outro animal é capaz de se dedicar desinteressadamente ao prazer de encontrar erros nas teorias alheias. O professor Gerardo Furtado, que pratica esse passatempo há décadas, é um exemplo para o resto da humanidade. Recentemente, ele descobriu que a Teoria da Evolução escorregou em algumas de suas afirmações. Isso não é de se admirar, pois toda essa parte da biologia não é mais que um grande casca de banana. Qualquer explicação que coloque tudo na conta do acaso nem chega a ser científica. Se, suponhamos, um elefante aparece na sala do professor Gerardo, ele, depois de um instante de embasbacação ante a beleza do mamífero, perguntar-se-á: “Mas o que trouxe este bicho até aqui?” É uma questão perfeitamente compreensível. Não o é, todavia, a resposta de que o bichano apareceu ali sem causa alguma: ou pelo puro capricho do destino ou pela improvável coincidência matemática, que são o mesmo. Se algum obscuro medieval conjecturasse que o ser que quebra a rotina do professor Gerardo chegou ali por levitação, ele estaria mais próximo da verdade do que o evolucionista que se contenta com o ainda mais aéreo acaso. A teoria mística seria algo que pelo menos poderia ser testado pela experiência.Elefante na Sala 

Cientistas, no entanto, alegram muito mais a vida dos seus alunos do que um elefante que por mero acaso se materializasse sentado no seu sofá. Depois de muito meditar no assunto, alguns chegaram à conclusão de que a diferença específica do homem é a linguagem. Isso já foi dito por Aristóteles, mas um cientista não se baseia na autoridade de ninguém que não seja a dele mesmo ou a de seus pares contemporâneos. O professor Gerardo vai além da teoria dos antigos, chegando inclusive a encontrar a propriedade que, dentro da linguagem, seria a peculiaridade humana: a gramática. É admirável essa eureca! O homem, dentre os outros mamíferos, é o único que segue as regras de sintaxe. Os beija-flores, com efeito, estão pouco se lixando para elas. As regras, todavia, não serviriam para nada se não fosse aquilo que Guimarães Rosa contou sobre Miguilim, o menino que “soprava as mãos num azado de consolo.”

Miguilim buscava em si mesmo um refrigério que aliviasse os incômodos da vida. Seu ato assim é perfeitamente compatível com o o princípio da primazia do prazer, já que levantar as mãos até a altura da boca não é um trabalho maior do que o benefício de ser consolado. No entanto, um urso que coçasse as próprias contas seria capaz do mesmo tipo de cálculo. O que torna Miguilim especial, todavia, é que sua resposta à realidade nem sempre é um reflexo condicionado, típico do ser que vive de regras, sejam elas as inscritas na sua natureza, sejam as da gramática ou as da Constituição Federal. Quando seu pai lhe trata pior do que um cachorro, e Miguilim teria todo o direito de matá-lo, ele se abstém. Ao tomar injustamente uma tunda de seu pai, Miguilim sentiu tanta raiva que sequer chorou. Se ele, nos recônditos de Minas Gerais, seguindo a regra do dente por dente e olho por olho, devolvesse a surra paterna , dificilmente sofreria alguma punição, e as consequências temporais do ato seriam mais positivas do que negativas. Segundo a lógica utilitarista, portanto, a ação valeria a pena. Buscar somente o útil, no entanto, é o único moralismo dos hedonistas. Miguilim não mergulha de cabeça no mal pela simples razão de que há certas coisas que, por mais benefícios que tragam, nunca devem ser feitas. O homem é o único animal capaz de, controlando-se, não cair na esparrela do utilitarismo.

domingo, 23 de agosto de 2015

Um Mestre da Liberdade

 

Os grandes males produzem grandes bens. Não há dúvida de que o bem é, por sua natureza, difusivo. Quando um escoteiro realiza sua boa ação do dia, ela como que se alonga no tempo pela força do seu exemplo e adquire uma permanência. Que de um ação má, no entanto, decorra algo bom é algo mais difícil de entender. No entanto, a história da Lituânia nos dá uma amostra de que isso não é uma mera possibilidade, mas um fato. No século XIX, a Lituânia já era uma grande potência. Não estava, todavia, sozinha no Olimpo imperial, e a Rússia, o gigante vizinho, dominou-a. Por medo à revoltas, Catarina II decidiu que toda profissão liberal estaria a partir de então proibida. Toda regra, no entanto, tem exceções, e é exatamente nelas que mora o sinal distintivo do imperialismo russo pré-revolucionário. Catarina II permitiu que houvesse sacerdotes na Lituânia, porque, embora o imperialismo russo não admitisse rivais políticos, Catarina II não quis deixar o povo sem a sua liberdade mais fundamental. O pressuposto era de que, sem religião, a cultura popular descambaria de tal modo que a Lituânia, em vez de ser uma conquista, seria somente um peso morto. Desprezar as sabedorias é sempre um tiro no pé.

Encurralada contra a parede, no entanto, a Lituânia, como um urso surpreendido em pleno sono pelo caçador implacável, não se deixou abater, mas reagiu. O governo de Catarina II era pessoal, vale dizer, não era baseado em leis. Embora a língua do país tenha sobrevivido graças ao contrabando de livros, o russo era o idioma da burocracia. Esse absurdo, todavia, não saiu do andar de cima da país, o que franqueou oportunidade para que, além de publicações de maior vulto, fizessem um jornal que atingisse as camadas médias e populares. E toda essa Torre de Babel aconteceu sem que houvesse sequer uma lei sobre o assunto, o que assemelha deveras a Lituânia ao Brasil, onde as leis sobre linguagem nunca prosperam definitivamente. Até aqui, porém, a luta lituana pela liberdade é passiva. Não havia movimentos de emancipação política.

O domínio russo, todavia, foi substituído pelo polonês, cujo caráter era diferente. Já havia a impessoalidade das leis, e a cultura lituana voltava a se fazer sentir. O terreno estava preparado para que surgisse um herói da nação. De um lado, havia um oponente tão hediondo como é uma máquina estatal que não visa o bem comum como algo distinto do individual. De outro, havia um povo que começava a vislumbrar o que é a liberdade, e como ela foi perdida em meio às guerras nacionais. E, acima de tudo, havia uma tampa sob o céu da Lituânia que ameaçava deixá-la completamente no escuro: a revolução russa poderia se espalhar pela região. O perigo, portanto, que faltava à época de Catarina II agora estava presente. O movimento lituano, no entanto, não é uma mera reação ao bolchevique, mas é antes a afirmação de que, se uma sociedade não é livre, ela jamais poderia aprender a fazer o bem. A liberdade então defendida, porém, não é um valor em si, mas sim a expressão jubilosa de que a Lituânia não tem outros inimigos fora o erro materialista. Do lado soviético, o grito pela liberdade tampouco deixou de ser ouvido. Mas a diferença é que a liberdade dentro dos quadrantes marxistas é o medo de tomar decisões duradouras e não um reconhecimento do bem, que leva, por sua vez, a uma difusão universal da bondade. O mestre da liberdade desta época é Dovydaitis, que fundou, além da Revista do Futuro, uma Universidade democrática.

Quando, todavia, o urso quase alcançava a luz que brilhava no exterior da caverna, eis que o caçador investe novamente. A Lituânia já havia passado pelo domínio czarista e polonês, mas ainda lhe restava enfrentar a aliança soviético-alemã. Se nas duas primeiras, a perseguição aos intelectuais fora simplesmente por medo de revoltas, agora o laicismo é quem dá as cartas. As catedrais são transformadas em museus. O ateísmo é ensinado nas escolas. À liberdade de expressão mandam-lhe calar a boca. E o maior herói nacional, o já velho Dovydaitis, é enviado a um campo de concentração onde, depois de contagiar sua alegria a seus companheiros de infortúnio, é fuzilado por ser coerente com a fé de Roma. Peixeira Vermelha - Samico

Nessa época é possível encontrar duas formas de resistências. A primeira era baseada na mera tentativa de administrar a sobrevivência, e só digna de menção porque ela não compactuava com a ditadura comunista. Isso é sempre possível mediante o contrabando de material proibido. Alguns, por exemplo, que cruzavam a fronteira, levavam consigo, em microfilmes, notícias para a mídia ocidental e outros, em idade militar, formavam milícias no interior. A segunda era formada por gente que saía às ruas no aniversário do pacto Ribbentrop – Molotov, assinado em 3 de agosto de 1939 para pedir mais liberdade, arriscando a própria pele. Um desses valentes, Tsys, foi preso por participar num desses motins, e o seu emprego foi para o espaço. Para sustentar a família, ele iniciou o primeiro jornal livre desde a ocupação soviética.

O bem realizado por Dovydaiitis e outros não podia, assim, ser desfeito. Ele conferiu à população lituana uma identidade que não só sobreviveu à hegemonia política soviética como também logrou destruí-la como um rio que, passando por cima das pedras do seu leito, desgasta-as pouco a pouco. Na década de 90, os lituanos pressionaram pela perestroica, e, depois de uma breve incursão soviética a que o povo resistiu, celebraram a liberdade cantando e dançando. Alguém, é claro, duvidará que Doyvidaitis tem alguma a ver com a emancipação que aconteceu depois de seu falecimento. No entanto, assim como um taco de sinuca é a causa da dança de várias bolas do outro lado da mesa, da mesma maneira um primeiro impulso rumo à liberdade pessoal de centenas de indivíduos é o que leva, mais adiante, à autodeterminação de uma país inteiro. Ainda que ainda quebrem o taco, o movimento iniciado por ele não tem fim.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Manifesto do Ecologista Feliz

Borboleta Degustando com os Pés

A esquerda se autodestruiu. O gatilho foi o a ideia que identifica no Brasil, como sistema econômico dominante, o patrimonialismo, que significa não o capitalismo industrial, mas sim a mera plutocracia que não produz bens, mas vive de rendas. Eis o alvo! Se no entanto o seu ódio fosse coerente, a esquerda teria se mantido longe dos patrimonialistas, que estavam no poder. Mas não! Influenciados por Antônio Gramsci, eles tomaram a cultura e destruíram a moral com uma mentira deslavada atrás da outra. Não há, porém, vácuo que não seja imediatamente preenchido de ar, e eles tomaram para si mesmos a autoridade moral que haviam destruídos nos outros. Chegando ao poder, ou eles destruíam a economia implantando o socialismo ou se aliavam aos grandes empresários, cujo único cliente rentável é o estado. Optaram estratagicamente pela segunda via sem abrir mão da primeira e decretaram para si mesmos que roubar é lícito desde que seja por um ideal. Essa é a tese de Olavo de Carvalho sobre os últimos anos da política tupiniquim. Isso, porém, não é a essência do problema.

Nos anos sessenta, a juventude brasileira descobriu que a liberdade é auto-determinação para o bem. O bem é algo que antes de mais nada está no intelecto do que na vontade. Pensando em círculo, eles descobriram que o leva o país para frente é a aristocracia da cultura, cujo principal nome, quando o assunto é brasilidade, é Sérgio Buarque de Holanda. A definição de brasileiro que encontraram lá é a do homem cordial, aquele que não sabe dizer não quando o negócio é bom para os dois lados, ainda que não seja estritamente legal. Chegando ao poder, eles tentaram se moldar a esse ideal, e assim aceitaram barganhas que depois seriam a sua derrota. O fracasso do PT é a uma provocação para que se redefina a brasilidade. O brasileiro, no entanto, não está completamente perdido, porque como  cordialidade não é teimosia, sempre há tempo de voltar atrás e retomar o caminho da verdade como expressa na fábula do leão. O rei dos bichanos havia capturado um cervo, que ele, então, não quis dividir com os outros animais, seus companheiros de selva. Ele, por uma privilégio da natureza, era mais forte que todos, e acabou traçando o prato sozinho. Passaram-se os anos, no entanto, e o rei das selvas se viu dominado pela velhice: moribundo, até a raposa ria dele. O leão agonizante é a esquerda, e a raposa boba de alegre é a direita.

Mas a verdade da fábula não é só esta. As categorias de direita e esquerda são grunhidos animalescos com os quais o leitor de jornal tenta identificar nas propostas dos candidatos qual é a mais condizente com o seu temperamento. Se ele é do tipo desconfiado, que consegue descobrir o delito por trás do discurso sobre inovações sociais, vota à direita. Caso seja jovem e ache que o mundo só pode melhorar, vota à esquerda. O progresso, no entanto, não é a invenção de novas sociedades, mas sim o fazer dessa poluição toda um lugar mais habitável. A sustentabilidade é o único modo de faze do planeta um lugar melhor, onde nem a raposa ri da desgraça do leão, nem o leão toma todo o bem que consegue só para si. Ambos caminham juntos em meio ao verde, que é de todos por não ser de ninguém.

Acontece o mesmo com o quintal de uma casa, onde todos brincam e a responsabilidade pela ordem do recinto não é bem-definida.  A origem da família, porém, não está na horda, que é um agrupamento desregrado cuja finalidade é a diversão inconsequente, mas sim a comunidade que os antropólogos chamam de clã e são a primaiada cujos laços remontam a um ancestral comum. A família como comunidade, assim, tem um princípio único. E isso, que é verdade para o clã, também o é para a união entre o homem e a mulher da vida moderna. Embora seja comunitário, o amor entre os esposos não é uma instituição totalmente objetiva, que tem a impessoalidade como marca. Ele, dentro de si mesmo, possui uma hierarquia, que na maior parte das vezes cabe ao marido, mas talvez nem sempre seja assim. A mangueira do quintal pode ficar enrolada ou no meio do caminho, toda  furada, irrigando a grama. Enfim, essa hierarquia entre esposo e esposa não é rígida, mas, se não houver, a comunidade familiar se transformaria numa anarquia, o que significa ser preciso que um dos dois aceite as ideias do outro e ceda. O homem e mulher, antes de educarem os os filhos, educam a si mesmos. A razão de ser de toda pedagogia familiar são, todavia, sempre as crianças. 

quarta-feira, 22 de julho de 2015

A Tragédia da Teoria

É sempre uma posição a ingrata a do árbitro autonomeado. Se, num jogo de futebol, o juiz, designado por alguém imparcial, já padece sob as calúnias infundadas sobre a honestidade de sua mãe, aquele que quisesse apitar o jogo por vontade própria, com mais razão seria vítima da pouca caridade alheia. No entanto, um empresário, por exemplo, que resolvesse investigar as relações familiares de seus empregados, buscando aí um vício que prejudicaria o o trabalho dele, ainda estaria no âmbito no profissionalismo. E é exatamente aí onde muitos homens de negócios erram e burocratas acertam. Porque, se na sociedade não houvesse um certo intrometimento na vida alheia, sempre haveria uma desculpa para que a tolerância fosse posta de lado. Não haveria tolerência, mas somente indiferença. Quando, então, o governo proíbe o jogo do bicho, isso não é uma intervenção indevida. É, antes, aplicação prática de uma teoria da qual ninguém discorda: se a riqueza é produto do mero acaso, ela também fortuitamente pode sair de uma mão e ir para outra. E a fortuna, que dá hoje a um o que antes era do outro, não passa de uma ladra que sempre comete o crime perfeito.

Fortuna

No debate público brasileiro, há hoje dois partidos: o dos que acham que mercado é quem premia e castiga e o dos que acham que a fortuna pode ser reduzida à vontade humana. O mercado, todavia, é algo muito parecida com a fortuna. Paulo Coelho, por exemplo, é um literato muito inferior a Diogo Mainardi. E, no entanto, vende muito mais livros. Do mesmo modo, os médicos são muito mais úteis à sociedade do que alguns magnatas que estão por trás de grandes empreendimentos ingovernáveis. A conciliação entre essas duas partes só é possível a partir dos fatos, que nínguém, salvo os idealistas, contestam. E, no entanto, é exatamente aí que os idealistas estão certos e os homens práticos divididos em partidos estão errados. Um dos axiomas desses filósofos herdeiros de Descartes é que a descrição da sociedade é tão mais precisa quanto mais matemática for. A matemática, porém, não é tudo. Quanto vale um homem? Diogo Mainardi vale mais que Paulo Coelho, porque um pobre vale muito mais do que um homem rico. E Paulo Coelho vale mais que Diogo Mainaridi porque um literato não vale nada se não houver alguém a para lê-lo A lição, porém, que ninguém nunca aprenderá por completo é que a realidade, antes de aprendida por alguém, foi caprichosamente moldada por um sucessão incontável mas finita de causas.

A metafísica dos acidentes de trânsitos é um exemplo vivo de que a especulação sobre as causas finitas é infinita. Todo acidente nada mais é do que uma coincidência de finalidades. A coincidência, no entanto, é uma sorte, que é o apelido que os otimistas dão à fortuna. Nela há o encontro de duas verdades práticas conflitantes. É assim que um Hamlet, dirigindo pelas ruas de São Paulo, descobre que a via necessária para sua missão é aquela que está imediatamente à sua direita. Ele, porém, ao ter esta eureca, estava, como de costume, meditando sobre a vida da maneira menos prática impossível: entre uma faixa e outra. Entre ele o seu desiderato, havia um ônibus que só não carregava Paulo Coelho porque o mercado – e não há nada de errado nisto - lhe deu dinheiro suficiente para só andar de táxi. Se, no entanto, ele estivesse lá, pagando ao trocador a sua passagem, a freada do ônibus teria feito com que ele caísse e quebrasse a mão. Essa mão, que não vale nada nem para mim nem para ninguém, é muito apreciada pelo Paulo Coelho, que então seria tomado de uma ira justa contra Hamlet. Ambos, dentro de sua própria cabeça, estariam certos. A diferença é que Hamlet, sendo um herói, teria parado o carro e pensado sobre a sucessão finita de causas do acidente: a bondade de cumprir a própria missão, a pressa do motorista para chegar à garagem e a imprudência do passageiro, que, podendo estar sentado, estava de pé.  E Paulo Coelho só escreveria um livro pseudomístico sobre os poderes inefáveis da mão quebrada de um mago.

A circunspecção é o que salva Hamlet e Paulo Coelho. É preciso olhar para o todo antes de fazer o particular. Se, no debate público brasileiro, o todo, nas suas infintas formas, fosse levado em conta, ninguém se espantaria de descobrir na regulação da sociedade uma verdade prática inegável. E essa é a de que a garagem não é um fim último do homem, e que Paulo Coelho, Diogo Mainardi e os inúmeros Hamlets brasileiros se beneficiam muito de uma fortuna que, em vez de cometer o crime perfeito, provoca as melhores coincidências dando aos pobres o que é deles e aos meditabundos a possibilidade meditar na vida dentro de um táxi para que não atrapalhem os outros. Isso, porém, seria o ideal, que a prática talvez contradiga.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

A Única Saída


Cerco que se fecha
Mônica Bérgamo conta o que depoimento de Júlio Camargo na Lava-Jato é devastador. Trata-se de um recado enviado ao Congresso. O depoimento comprometeria Eduardo Cunha, que portanto deveria tentar alguma troca de favores com Dilma para que ela intervenha. Isso, porém, é praticamente impossível, porque o Sérgio Moro é bastante independente. A única solução seria trocar o Rodrigo Janot por outro procurador que fizesse vistas grossas quanto aos desmandos dos poderes executivo e legislativo.

As contas da Dilma serão julgadas em breve pelo TCU. O presidente do Tribunal é Aroldo Cedraz, que recebeu propina de Ricardo Pessoa. Além disso, seu filho advoga junto ao tribunal, o que pode lhe render vantagens indescritíveis e ilícitas. Aroldo pai buscava esconder o seu nome, usando o dinheiro extorquido através de uma empresa que constituiu com sua mãe.

O discurso da pilantragem é dizer que não sabia de nada. Não sabiam que pedir dinheiro para uma empresa que tem contratos milionários com eles é uma espécie de esmola forçada. É, por exemplo, o que disse José Cardozo em seu depoimento à CPI da Petrobrás: a presidente da República não saberia que a origem do dinheiro era ilícita. A ciência, de fato, do ladrão não é a mesma ciência do cidadão.
O cidadão oriundo da Revolução Francesa sabia que algo era ilícito porque o código lhe dizia. Neste sentido, Dilma, sendo economista e nunca tendo pegado num Código Penal, pode se dizer ignorante da proibição de roubar. Isso é a ciência do direito positivo, que é muito parecida com a ciência do Professor Gerardo Furtado. Ela parte do axioma e manda às cucuias todo o bom senso. O axioma é que só existe a lei positiva. O bom senso, todavia, é que o crime não compensa. E isso ninguém ignora.

A única solução, portanto, é que os políticos apoiem a investigação e digam tudo o que sabem. Os cínicos sem dúvida a chamam de utopia. Há mais ingenuidade, porém, em achar que toda a roupa suja será lavada por meio de argumentações legais, que ninguém do povo entende, do que em posar de vilão arrependido. Tosltói, nesse ponto, quase enganou a humanidade. O arrependimento não é a causa do suicídio de Anna Kareninna, mas sim a loucura de não olhar para trás e ver que o que poderia ter sido diferente ainda pode.




quarta-feira, 15 de julho de 2015

Raposas e Fiscais


Contam que uma raposa um dia caminhava pela Paulista e viu o seu reflexo numa vitrine. Ela havia conseguido, na parte de trás de um restaurante chique, o seu almoço. Caminhando lentamente pela Paulista mastigando o resto de rosbife, ela olha para o lado e vê, numa vitrine, uma raposa muito mais bonita, e com ainda outra diferença. Ela estava mastigando não um rosbife mais apetitoso, que de repente cai no chão. Era a própria raposa que, tentando abocanhar o da vitrine, perdera o seu pedaço de carne pisado por um pedestre apressado.
Fiscal no Espelho
Ver o seu reflexo na realidade é próprio do fiscal. Longe de mim criticar uma profissão tão necessária à sociedade. Ela, no entanto, desvia-se frequentemente para mera burocracia como aconteceu recentemente com ofuncionário do MEC que resolveu pedir a lista de bibliografia produzida por uma faculdade de Filosofia. Isso é como pedir a Platão que colocasse por escrito os seus ensinamentos. Ainda que ele não os tivesse, ele não seria menos filósofo por conta disso.  A atividade fiscalizadora, no entanto, não é exercida somente por funcionários públicos. Lindbergh Farias também é fiscal ao fazer política interna no PSDB. Apesar de político, ele não deixa de ser um camarada virtuoso. Na sua coleção de méritos, todos os outros se escondem sob o da discrição. Quando ele soube que a Petrobrás tinha virado espólio, ele fechou a boca. Uma vez, um jornalista lhe perguntou se ele sabia alguma coisa sobre a possibilidade de impedimento da presidente da República, e ele, como de costume, desconversou dizendo que a pizza já estava no forno e que ninguém queria que a apuração terminasse. É impossível ver no discurso de Lindbergh algo mais do que palavras lançadas ao vento com a displicência de um homem simples, consciente de que a atividade política é um trabalho tão longo quanto o de Sísifo.

O mesmo, porém, não acontece com a delação de Paulo Roberto da Costa contra Lindbergh. Sua fala foi motivada ou pelo ressentimento  contra um esquema de corrupção que lhe rendia pouco ou pela sede de justiça. Se foi o primeiro, trata-se de uma mentira contra a reputação de Lindbergh, que partiria o bolo pegando o maior pedaço para si. Se foi a segunda, trata-se de uma verdade e Lindbergh Farias faz de tudo para escamotear a corrupção na Petrobrás, sendo ele mesmo o membro do PSDB que quer abafar a investigação. Um abafamento, no entanto, consiste  o cargo e os estipêndios dos detetives. Isso, porém, é improvável que aconteça porque a mídia está de olho.

Mas e se Lindbergh é um herói? Ele seria a vítima da mentira deslavada de um delator que, pasmem, inventou uma história maluca somente para se ver livre da cadeia. Um amigo meu cultiva essa teoria. Isso, porém, é conto de fadas de quinta categoria. Se os delatores, além de terem vários indícios contra si, mentissem ao juiz, eles atrairiam para si a ira justa do povo. Essa opinião é como acreditar que a raposa, tendo visto a carne jogado no lixo, tivesse procurado o cliente de regime para lhe dar seus agradecimentos. Há raposas que viram gente, mas esse parece ser o antes o caso do Michel Temer. Seu discurso sobre a tranquilidade institucional da democracia brasileira é um sopro de poesia em meio à aridez das notícias de corrupção. O ponto, todavia, é que a justiça das instituições é cega, e seria capaz de condenar inocentes e livrar culpados. E não há poesia que substitua uma visão clara sobre o que realmente atrapalha a vida dos brasileiros. Não é a falta do dinheiro surrupiado na Petrobrás. É o medo de serem enganados por políticos que chamam de democracia a agenda das minorias cuja pseudo-filosofia é que não haveria verdade alguma. 

terça-feira, 7 de julho de 2015

A Dança das Galáxias

A modernidade é um caso de polícia. Muitas vezes, no entanto, a turma da ordem trabalha tão bem que é impossível não lhe jogar um confete. É assim que os bandidos mais perigosos dessas bandas, que na frente da platéia bancam o Robin dos Bosques, mas não passam de coringas, estão com o caminho pavimentado rumo ao mais desumanos dos estabelecimentos. A desumanidade da prisão, no entanto, é a multidão de homens que se acumulam no mesmo metro quadrado. Um homem é um homem, mas vários homens juntos são violentos como uma alcatéia. No entanto, se os infelizes recebessem na prisão o tratamento que não receberam em casa, sairão de lá mais alegres como o Tiririca. E a máquina do mundo, tendo girado mais vez, entregaria à posteridade uma raça renovada.
A proganda oficial, no entanto, afirma que a máquina do mundo não erra nunca, que seu funcionamento é sempre garantido, e que, se há algum problema, a assistência técnica o resolveria da noite para o dia. Não há, todavia, nenhuma garantia de que, preso Robin Hood, não haja mais nenhum vilão. É perfeitamente possível, dentro da engranagem, que uma peça que andava para frente começasse a girar para trás e todos nós regredíssemos àquele paraíso, em que tudo era de todos, e não havia nenhuma divisão de classes. A diferença, no entanto, é que o mito moderno, em vez de ser uma memória, é um projeto que nega as divisões entre os homens porque antes lhes priva das suas diferenças. E uma das verdades dos mitos antigos está  na afirmação de que a única diferença intolerável era a de Polifemo, que tinha um olho só. É impossível ver a realidade em todas as suas dimensões quando se tem somente uma ideia, e todo fanatismo é baseado na opinião de que Polifemo enxerga melhor que Ulisses, o que não só um erro estético, mas sim um desvio de consequências cosmológicas.
Os astros estão todos alinhados numa ordem que se parecem muito com a de um engenheiro que planeja uma cidade, se por um momento desconsiderarmos que o universo é mil vezes mais complexo.  No entanto, há uma espécie de desvio que faz com que algumas galáxias próximas à Via Láctea estejam capriochosamente curvadas. A explicação mais aceita  é a de que a teia de matéria escura que constitui a geometria invísvel do universo não é retilínea por uma infinidade de razões. Um caubói australiano, no entanto, que atende pelo nome de Pavel Kroupa, resolveu por bem que toda essa disposição irregular foi causada por um acidente no percurso da Terra até o lugar onde hoje se encontra. As duas explicações não são mutuamente excludentes. O bom senso de uma aponta a causa do fenômeno que a matemática da outra descreve. O Polifemo moderno, no entanto, não admite que, além do fenômeno, haja uma sucessão bem definida de causas.
Ptolomeu Barroco
Há quem diga que Descartes é a causa dessa e de outras tragédias contemporâneas. Ele, no entanto, é uma vítima da tentativa frustrada de abandonar os universais em troca de uma certeza tão rasteira quanto falsa. O maior acidente de percurso da história da filosfia, porém, foi Ockham, que achava que, dentre duas explicações, a mais simples é superior à mais complexa, como se esta não fosse formada por várias daquelas. E quanto mais melhor! No entanto, a navalha de Ockam corta fora o supérfluo em nome da brevidade. E Pavel Kroupa, de fato, não teria conseguido levar a sua tese adiante se ela não fosse, além de certeira, simples, que é uma das virtudes da modernidade. E o que diz, trocando em miúdos, é que a matemática, se serve para alguma coisa, não é para traçar um folha quadriculada e obssessivamente tentar fazer com que o universo se encaixe nela. Ela serve, antes de mais nada, para descrever o mundo antes e depois de um movimento. Se este como hipótese não é científico, o problema é dos cartesianos, e não de Kroupa.
Descartes, no entanto, é o efeito colateral de uma sacada tão genial que quase poderia ser comparada com a de permitir um desvio na linha das galáxias. Um dos nós górdios da filosofia é explicar como a lógica que não existe no mundo foi parar nos computadores dos adversários de Kroupa.  E a resposta do Filósofo é que se essa lógica das causas é de fato incompatível com a da maioria, não é o universo quem está errado, mas sim quem acha que sua cabeça é maior do que Via Láctea. E que, todavia, é perfeitamente possível que a cabeça de Louis Pasteur seja maior do que a de todos os seus coleguinhas juntos. O novo Louis Pasteur, no entanto, é mesmo Kroupa, que viu nas estrelas brilhar o sempre novo aristotelismo das causas com uma evidência de que nem Descartes, fechado no seu quarto e contemplando o fogo transformar a cera, foi capaz.
O fogo é de fato o melhor exemplo de que nada nessa vida é eterno. Os bombeiros o conhecem pela prática. O problema, porém, aparece quando alguns cientistas, muito competentes em astronomia, afirmam que tudo o que eles fazem é no sentido de aumentar o domínio sobre a natureza e fazer mais telefones celulares e quejandos. O mundo moderno, porém, está cansado de novas tecnologias. Como uma máquina poderia explicar que, em meio à imensa ordem dos cosmos, há algumas galáxias fora de lugar? A astronomia, porém, não é uma ciência que começa de baixo e sobre numa escalada ascedente rumo ao infinito. Pelo contrário, há um infinito nas coisas aqui de baixo que permitem perceber como os astros lá em cima se movem. Kroupa não aprendeu que havia movimento olhando para o céu, mas sim percebendo que há uma força indomável na natureza que não só faz com que rosas brotem no asfalto, mas também que a trajetória dos astros sejam alteradas.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

João de Humelaga

Um rapaz que cursava odontologia foi obrigado – do contrário, ele não se formaria – a se inscrever numa disciplina de biologia. No primeiro dia de aula, ele sinceramente disse ao professor que as lições seriam tão úteis para ele quanto plantar batatas. O mestre, então, diante da ignorância, respirou fundo e permitiu resignadamente que ele não frequentasse as classes. No entanto, passou-lhe um trabalho. Ele deveria observar alguns peixes dentro de um aquário e fazer relatórios sobre o que acontecia. Nos primeiros meses, as observações se limitaram à nutrição dos bichos, e o professor se mostrou insatisfeito. No fim do semestre, porém, o aluno tomou as notas que lhe valeram a aprovação. Tendo ficado acordado até mais tarde estudando, ele cochilou e seu braço derrubou a luminária. De repente, todos os peixes, que estavam imóveis, correram para a luz. Os fótons atraíam os animais quando a sua fonte estava colada à parede de vidro, mas quando procediam da janela ou da lâmpada no teto, o mesmo não acontecia. Havia já um problema, uma pergunta teórica que poderia ser respondida teoricamente.

No imbróglio da pesquisa com células-tronco, a observação palmar, simples e acessível a qualquer um é a de que duma única célula surge o corpo inteiro do seu João de Humelaga. E o pseudo-fato é que as células-tronco adultas não seriviriam. Hoje, depois que o STF cedeu à chantagem emocial de alguns pseudo-cientistas, a opinião aceita é a de que servem. Não havia um problema teórico a ser resolvido, mas uma vontade louca de agir. Mas os pseudo-cientistas, com o rabo entre as pernas, admitem que haviam errado, que haviam se precipitado, que, antes de virem a público com a promessa de uma panacéia, deveriam ter feito mais observações. E aí teriam visto que as células-tronco adultas são viáveis para o experimento que pretendiam, que os embriões poderiam ter sido deixados em paz, que o senhor João de Humelaga poderia ter nascido e estar solto no mundo, vivo e alegre.Ciência é  observação

Esse, porém, não era o método do nunca assaz louvado Pasteur. Antes de propor a teoria do germe, ele tinha alguns fatos que qualquer um poderia ver com os próprios olhos. O primeiro era que a multiplicação de micro-organismos não dependia do oxigênio. O segundo era que essas pequenas vidas, como as grandes, não resistiam a uma temperatura elevada. O terceiro era que esses seres hipotéticos tinham um certa massa. A diferença entre estes e o fatídico fato dos pesquisadores que prometiam o que não podiam cumprir é esta: os acidentes dos mircróbios já haviam sido observados quando a explicação foi proposta, mas a tese do quanto mais jovem melhor não passa de uma expressão bonitinha, mas ordinária. Não era um fato contemplado, mas sim uma hipótese a ser refutada à custa de outras pessoas.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

O Lugar da Escola


Um dos fetiches mais saudáveis da humanidade é o apreço pelos antigos. O tempo de ouro de que falam os poetas é a expressão daquele sentimento sem o qual nenhuma família digna do nome se forma. O rapaz que tem orgulho dos seus antepassados está no caminho de superá-los porque não despreza as suas conquistas. Aquele, porém, que vê nos seus pais e avós múmias que o tempo enterrou não é capaz incrementar o patrimônio moral do seu sangue simplesmente porque ele sequer o possui. Isso fica claro naquela história de Michelangelo e o pedaço de mármore do qual sairia Davi. Os antepassados podem até ser uma pedra disforme, mas desprezá-los é como tentar fazer por si próprio não só a escultura, mas também fabricar o mármore de que ela será feita. Quando este fica pronto – se fica – já não há tempo para mais nada, e será a vez da próxima geração esquecer a antiga.

Boa da parte desse progressismo moderno, que é como um homem que perdeu a memória, vangloria-se de ser científico. E a ciência, de fato, é a pérola mais brilhante na herança daquela época feroz que foi a Idade Média. No entanto, há uma coisa que talvez ninguém entenda, mas que nem por isso deixarei de dizer: para o correto apreço da ciência, é necessário desprezá-la um pouco. O que gostaria de dizer é algo muito parecido com aquele princípio do bom senso segundo o qual somente as pessoas que não são obcecadas pela riqueza tem o ócio necessário para gozá-la. O avaro cujo ouro é a ciência é tão preocupado com revistas científicas que para ele o mundo sempre chega de segunda mão. Ele acaba deixando de lado a sua capacidade de investigar um fato para investigar exclusivamente a investigação dos outros. E o aprendiz de cientista perde assim a faculdade de elaborar a própria opinião transformando-se num papagaio que repete as teorias da moda.

Não estou aqui a quebrar o telhado de vidro do cientificismo, mesmo porque ele é uma laje de concreto bem fechada para tudo que está em cima. O que digo, mais precisamente, é que o homem está sobre esta casa que agora muitos pretendem construir isolada da civilização. E o problema começa quando este homem, que está acima, é colocado abaixo e se torna uma cobaia de teorias de duvidosa cientificidade como é o psicologismo behaviorista. Recentemente, um jornal que divulga sociologia alardeava que os seres humanos gostam de receber elogios como os animais gostam de receber comida, e que portanto o louvor pelo comportamento desejado pelo governo seria uma modo de fomentar esta ou aquela atitude assim como um cão aprende a sentar se lhe dão ração quando ouve o comando. O problema com isso tudo está em que, se não há uma filosofia sã do homem, as atitudes a serem fomentadas são, na pior dos cenários, uma passividade total ante as ingerências da política e, no melhor, o que alguns chamam de tolerância e é apenas falta de convicção.

Um dos maiores bens da leitura é exatamente ser um antídoto contra as essas ideias que aparecem na praça pública. Leitores, porém, são usualmente gente que não cultiva o desprezo pelos livros necessário à ação. O mundo, assim, fica nas mãos das pessoas práticas, em quem os intelectuais jogam a pedra da crítica sem contudo se levantar do sofá. Os líderes práticos, porém, também passam pela escola nesses tempo de educação universal. Se, todavia, os colégios forem somente uma organização que forma líderes para outras instituições, eles não servirão para tirar o homem da posição incômoda em que o behavioristas o colocaram. O único jeito é formar leitores capazes de ler não somente os livros mas também o mundo a sua volta. Se o lugar de toda criança é na escola, o lugar da educação é sobre a corda esticada do equilibrista, que não pende nem para o eruditismo inócuo nem para a práxis irrefletida.


sábado, 23 de maio de 2015

O Palácio da Mooca

O anti-herói tem mais de de vinte e sete séculos de existência, embora os pedantes achem que, ao escreverem sobre drogados, inventam a roda. Aquiles, por exemplo, ao quebrar a unidade do exército grego, comporta-se com uma vilania, que é o espelho perfeito da malandragem perpetrada por Ulisses no final da guerra. Enquanto o primeiro trai os gregos, dando-lhes de presente o Cavalo de Tróia da sua força física desgovernada, o príncipe de Ítaca faz o mesmo, mas contra o oponente até então imperecível. Odisseu é o homem cuja prudência deu a galardão aos gregos, e a Aquiles o vilão que, tendo matado Heitor, negar-lhe-ia até a sepultura se não Príamo não fosse lhe pedir o corpo. A virtude de Odisseu, no entanto, não se resumia à estratégia militar, mas se a sua terra natal, que ele governava com mão tão doce a ponto de permitir que sua esposa ficasse à frente de todos os seus negócios. A mulher, com efeito, é o melhor amigo do homem na defesa de seu patrimônio, desde que ela não seja a melhor amiga do cartão de crédito.
A maior riqueza de Odisseu, todavia, não eram as suas terras, onde as vinhas cresciam até derramarem abundantemente o vinho nos cálices servidos em dia de festa. Se Penélope tem uma incumbência importante, essa é a tarefa de educar Telêmaco em meio a príncipes que eram tão boa companhia de sua família quanto os parasitas o são de carvalho. A educação, dizem alguns cuja sobrancelha erguida demonstra que fazem mais força para pensar do que o Maguila para esbofetear, é imprescindível ao desenvolvimento do homem. Isso seria verdade se a educação pudesse ser destruída pelos amigos que um filho tem e seria melhor que não tivesse. Odisseu, no entanto, tem, ao lado das piores exemplos, a lição mais preciosa que alguém poderia conquistar nessa vida. Quando Odisseu retorna à ilha, ele não se preocupa com o rosto de Penélope, que as rugas enfeiavam, mas sim com manutenção de sua propriedade, que a desfaçatez dos príncipes havia tornado impossível. Foi isso que o motivou a abandonar a prudência que havia sido a vitória dos gregos para dar vazão a uma ira muito semelhante a que dá início ao entrevero de Aquiles. Ambos tem seus momentos de anti-heroísmo, mas no centro que une as duas estórias está a vitória de um povo e a conciliação do rei vencido com o assassino de seu filho.
A maior riqueza de Ulisses, materialmente, era o solo de Ítaca. Os mercados financeiros da época – que são velhos e gastos como todo o negócio o que faz da bufunfa o seu eixo exclusivo – somente teriam o que trocar se houvesse plantações e colheitas. No entanto, mais do que arremeter contra os príncipes porque eles não tinham cuidado de seus bens, a ira de Ulisses os destrói porque eles achavam que o seu maior seria tão venal quanto o produto do trabalho de seus escravos. O trabalho produz riqueza, mas ela vale tanto quanto valer o trabalhador, e este é o primeiro a reconhecer que as riquezas conseguidas sem esforço são as mais saborosas. Como o ladrão, ele sabe que o fruto é tanto melhor quanto mais proibido for. A diferença é que, enquanto o trabalhador se ocupa disso durante oito horas por dia, o ladrão usa as oito horas da noite.
Essa é a razão por que multiplicar as leis contra corrupção não levaria o Brasil a lugar nenhum. O melhor é deixá-la correr solta, aplaudindo os jornalistas se refestelam a cada descoberta nova de um ovo podre. O fato é que, embora eu admire muito aqueles que não leem jornais porque lá só há os cadáveres da moralidade pública, não consigo deixar de admirar o trabalho do coveiro. Há malandragem por trás do que vem fazendo o Janot, e é das heroicas: se o único indício contra o Eduardo Cunha é o cumprimento de seu dever de parlamentar de investigar os que contratam com o Planalto, então ele só foi acusado porque o contrário seria a dar à propaganda petista o argumento de perseguição política. A denúncia sem fundamento de um opositor do PT é a garantia de imparcialidade da investigação.
Toda malandragem complicada, no entanto, é uma perda de tempo. A única coisa que um malandro ao fim e ao cabo consegue é se livrar de ter a sua reputação manchada. Reputações, no entanto, são vendidas nas bancas de jornais por dois mirréis, e muito gente honesta é incluída no saco da corrupção somente porque estava na hora e no lugar errados. Vários empregados das construtoras, como os soldados do exército grego, sofrem com a traição de Aquiles. No entanto, se um empregado teve relações escusas com o mundo da política, é bem possível que tenha sido somente para garantir à sua Penélope e ao seu Telêmaco um palácio na Mooca.



quinta-feira, 21 de maio de 2015

Édipo e a Mulher de César


Em toda a guerra, a primeira coisa a se descobrir é o inimigo. Se a batalha é sobre Palácio do Planalto, o inimigo ou é pobre ou é rico, e está claro que, no momento, o inimigo são aqueles que detêm o que dinheiro nenhum no mundo pode comprar. É possível comprar casas em Parati, carros de luxo e postos de gasolina, mas ninguém é capaz de comprar o que nem todos os bens podem garantir. Uma consequência da riqueza é, sem dúvida, uma aura de prestígio. No entanto, essa aura de prestígio, se parece vir do nada, é muito mais prestigiosa. E é exatamente este o inimigo. A arma que os políticos empunham contra toda a população brasileira é o domínio da retórica cujo fundamento é o mais vazio dos nadas.
A malandragem em questão consiste basicamente em dizer que, como todas as pessoas são livres, os que cometeram crimes durante os governos do PT agiram por iniciativa própria sem contar necessariamente com o aval do partido. Esse argumento, porém, é como a culpa de Édipo. Ele afirma basicamente que o petistas teriam aparecido na política sem terem passado pelas reuniões que cada diretório municipal, estadual e federal faz para decidir quais serão e como serão custeadas as candidaturas. Ou, se passaram, enganaram a todos tão bem que os dirigentes simplesmente não farejariam a picaretagem. De qualquer modo, o partido, como herói tebano, não teria culpa alguma, e a ele só caberiam os méritos das políticas sociais.
 
Sobre essas, teriam o domínio do fato Lula e Dilma ou quem quer seja o candidato nas próximas eleições. Quando, portanto, o assunto são os alimentos distribuídos no Nordeste, não haveria dúvida de que eles saberiam e controlariam toda a engrenagem da máquina pública. No entanto, quando o assunto são os churrascos que Dirceu e companhia faziam com o dinheiro do povo, ninguém teria domínio sobre nada. A coisa não é coerente, mas um erro como esse nunca é percebido no meio da rua, onde os eleitores se afanam para ganhar o pão de cada dia.
A única solução, portanto, seria entrar com um processo judicial contra Dilma. Isso, porém, levaria o país a uma crise institucional, que os melhores veem como desnecessária e os críticos de plantão, cujo principal ocupação é torcer para o circo pegar fogo, veem como um fulgurante espetáculo de democracia. Que o Brasil é um circo, disso não há dúvida. Mas o melhor seria revelar quem são os incendiários pela única via possível: a denúncia calma e tranquila dos crimes cometidos pela propaganda petista, que vão muito além da corrupção pecuniária, e que são nada menos do que os discursos baseados sobre a lei. Segundos estes, as doações feitas por empresários ao Partido dos Trabalhadores seriam lícitas e, portanto, não haveria injustiça alguma. No entanto, é muito possível que por detrás de uma ato legal como uma compra e venda haja uma extorsão, sem a qual o preço não teria sido tão baixo ou alto. O PT vendeu o Brasil de maneira legal, mas isso não torna cada de um de seus membros menos responsável.
O contrário seria como afirmar que o massacre do Carandiru foi culpa do Estado e não dos presos e dos policiais, ou que a causa da queda recente do avião alemão na França é somente o deslize do seu empregador. Em todos esses casos concretos, o que há uma complexidade de erros que terminam numa tragédia. O erro, porém, não é algo inofensivo. Se Clinton não sabia que o complexo químico por ele bombardeado não era uma fábrica terrorista de armas, isso não o exime de ter dado a ordem um tanto desleixadamente. Muito mais grave, porém, é o erro que se transforma em ignorância voluntária, que é a patologia presente não só na queda do avião alemão como também no argumento - que é repetido como a insistência de um vinil arranhado – de que ninguém sabia de nada. Se realmente não sabiam, não haveria problema algum. No entanto, como não desconfiar que mesmo os mais sonhadores dos petistas não seriam feitos do mesmo barro que Fernando Collor de Mello? E, aliás, de um barro um tanto mais sujo, pois vai nele misturado, além da sede de dinheiro, um palavreado estranhíssimo sobre um partido mais imaculado que a mulher de César.
Todavia, Édipo e a digníssima esposa de César são cobaias de um experimento científico que começou no Renascimento. A partir de então, a política deixou de ser objeto de estudo acadêmico e passou a fazer parte do currículo técnico, que se ocupava em fornecer os meios para que qualquer um chegasse ao poder. O tubo de ensaio onde a experiência acontece é a imprensa, que vibra enquanto os ingredientes borbulham. O resultado é conhecido de todos: o que é mais leve boia. No caso, não há dúvidas de que, dentre as diversas propagandas da praça pública, não há nenhuma tão sem peso quanto as explicações petistas sobre os seus desmandos.





segunda-feira, 18 de maio de 2015

O Pênalti


Há muitos fatos inquestionáveis nesta vida. Ninguém por exemplo duvida de que Osama bin Laden era um terrorista científico, que fazia da razão um instrumento para o poder político. E, nesse sentido, ele faz melhor do que os intelectuais que acham que pensar é uma atividade em si e sem nenhuma finalidade. O problema, no entanto, é que seu projeto de poder não foi pensado. Se fosse, ele veria que é impossível vencer os Estados Unidos, cujo liberalismo é uma lição de democracia prática. Se o dinheiro é um voto, e o voto é onipotente, então, sendo um dos votos da população americana terminar com o terrorismo a todo custo, isso acontecerá assim que orçamento do Tio Sam o permitir. Há, no entanto, uma miríade de questões cuja resposta é aberta, e uma delas versa sobre a causalidade do mundo. Se, por exemplo, um jogador como o Roberto Silva perde um pênalti, isso significa que esse momento mágico do futebol é um títere nas mãos do acaso. Não haveria nada de certo no mundo, que seria nada mais que um jogo de azar. Ou ainda, se uma furacão se anuncia, no horizonte, e os pássaros, elefantes e leões saem correndo rumo às montanhas para buscar abrigo, isso tampouco seria um ato livre, mas somente a engrenagem do mundo funcionando sobre os seus seres irracionais.
Esse acaso, todavia, não seria meramente um fato, mas também uma lição para o homem, cuja vida decorreria assim de capricho em capricho, cujas decisões seria tão arbitrárias quanto a de um jogador vendido que, na hora crítica da partida, resolve chutar para fora, cuja liberdade, enfim, não teria outro propósito que o de afirmar a si mesma. A tolerância é a resposta que os pedantes dão a esse problema como se essa palavra fosse uma varinha de condão contra toda a corrupção. A solução, é claro, está em descobrir quem é o real culpado pela perda do pênalti, e se o que está em jogo é uma causa espúria como o suborno do juiz ou do jogador, o melhor a se fazer é puni-lo no intuito de que aprenda a se comportar melhor da próxima vez. A tragédia, no entanto, é que muitas vezes essas causas são indecifráveis, e os crimes acabam ficando sem punição. Afirmar, no entanto, que um assassinato é suicídio é negar que o crime teve qualquer causa extrínseca, o que é manifestamente falso. E foi isso, por exemplo, que o maior partidário da Tolerância disse acerca de um crime cujo culpado a razão humana não se atreve a perscrutar: a morte de Jean Calas.
Uma explicação, possível, no entanto, é que Calas se matou porque o mundo era intolerante. Isso, porém, além de ser calúnia de dimensões cosmológicas, não explica, todavia, que muitas outras pessoas vivam nele e não se matem. É muito mais plausível admitir que o crime aconteceu porque alguém permitiu que ele acontecesse, de descuido em descuido, como um jogador que, passando o ano sem praticar, perde o pênalti na final do campeonato. E afirmar que esse jogador merece uma punição, ainda que, na sua ingenuidade, ele ache que não fez nada errado, não é intolerância: é pedagogia. Assim, todos os outros aprenderão a lição de que, sem treino, não há talento algum que sirva.
Este é, aliás, outro erro do supinamente louvado e incompreendido Voltaire. Ele achava que havia uma razão que governava o mundo, a qual, todavia, era distribuída de maneira irregular entre as criaturas. Assim, os que recebiam um pouco mais, seriam seres racionais, e fugiriam dos furacões conscientemente, e àqueles que na partilha coubesse menos seriam os macacos que fogem das catástrofes simplesmente porque veem os outros animais correndo e não conseguem resistir ao impulso de imitá-los. A razão, no entanto, não é algo posto no homem como se uma causa extrínseca fosse a responsável pelo maior ou menor QI das pessoas. Ela é conquistada mediante o pensamento livre, que, aliás, não tem nada a ver com a tolerância segundo a qual os maus jogadores perderiam os pênaltis somente por descuido.
A pomba foi programada para, mesmo diante da mais terrível tempestade, preservar a sua vida, que, no entanto, pode ser tirada pelo caçador que não sabe se divertir de outro modo

A questão, portanto, é essa: ou um artilheiro perde o pênalti porque quis ou porque porque foi movido por forças misteriosas que o levam a precipitar o seu time na sarjeta da opinião pública como a depressão daquele piloto alemão fez os seus passageiros se precipitarem contra um rocha. Essa força misteriosa seria a mesma presente naquilo que os biólogos chamam de mutações aleatórias. É, porém, muito mais difícil acreditar nisso do que numa causa, seja ela física como o churrasco que artilheiro vendido compraria com o dinheiro da propina, seja metafísica como o propósito que o jogador fiel faz de, ao acertar o ângulo, dar à torcida uma alegria que o mundo não conhece.




domingo, 19 de abril de 2015

Loucura Científica

Quando um autor resolve tratar de um tema de maneira científica, a primeira pergunta que alguém em sã consciência se faz é se ele tem o instrumental filosófico adequado. Quando Pasteur decidiu, por exemplo, estudar os micróbios, ele não tinha um fato. Mas ele tinha uma hipótese filosoficamente apropriada, cujo postulado básico era: um rato não pode derivar de um lixo porque ele é muito mais complexo do que restos de comida. Isso não quer dizer que a ciência não trata de fatos. No entanto, fatos por si só não passam de obviedades, e se a ciência fosse só isso, ela não seria muita coisa.

Há mistérios no mundo, que compete a ciência desvendar. Um mistério é sempre uma coisa religiosa, embora nem sempre a explicação seja uma questão de fé. Não é necessário ter fé para refutar a teoria da abiogênese. Basta um pouco de bom senso. Em todo bom senso todavia há a constatação, comum a todas as pessoas saudáveis, de que existem fatos óbvios, espaços de claridade, intermitências de luz, mesmo no problema mais espinhoso. E que a percepção destes fatos não é patrimônio exclusivo da geração atual, como se nossos antepassados fossem o lixo do qual nós, ratos modernos, derivamos. Quando, portanto, um cientista do gabarito do Prof. Gerardo Furtado afirma que um conceito da teoria da evolução tão central como é o da hierarquia natural não tem fundamento, há aí um grave erro filosófico. Falta-lhe o mais simples bom senso de reconhecer que os homens são o topo de cadeia alimentar.

O argumento principal é: as ações humanas são movidas por instintos; o que é movido por instinto é um animal; logo, as ações humanas são animalescas. Se, no entanto, o professor Gerardo dobra uma rua e vê que donzela está sendo assaltada por um meliante, há, nesse instante, um fato que derruba a premissa de seu raciocínio. Porque, neste momento, ele é livre para seguir o seu instinto de preservação da própria pele e fingir que não viu, ou ele pode se aventurar num ato heroico. Um animal, porém, está programado para fazer sempre a mesma coisa, e se é difícil ensiná-lo a ser altruísta para com os da sua própria espécie, é praticamente impossível fazê-lo acudir as necessidades de uma outra espécie, como fazem alguns homens. Isso, porém, é óbvio. É, portanto, mais um mistério da existência que o Prof. Gerardo Furtado não o compreenda e saia por aí afirmando que à ciência falta este tipo de bom senso.

Talvez, porém, seja porque ele, afinal de contas, é um defensor da humildade contra uma certa tendência moderna de colocar o homem no centro de tudo. Nesta sua batalha, ele estaria certo. Mas, ah!, não é por aí que se começa o conserto deste mundo. Não é rebaixando o homem e elevando a ciência que as coisas vão se reequilibrar, porque a ciência é algo humano. É antes buscando o que de verdade há nos conceitos que as academias propõe hoje e propuseram ontem. E um desses, que frequentemente merece ser alvo da fúria refutativa do Prof. Gerardo, é o da hierarquia natural. Uma das interpretações da ideia é que o homem, sendo o topo da cadeia alimentar, é o mais forte de todos os animais. Isso, porém, seria falso. O homem não é o mais forte, mas sim o mais fraco dos animais. Um urso não precisa fazer lã para se aquecer no inverno. Um peixe não precisa de um tubo de ar para nadar no oceano. Um pássaro não precisa entrar dentro de um avião para voar. O homem, todavia, já encontrou remédio para todas essas carências. E isso aconteceria se ele fosse somente capaz de seguir cegamente o seu instinto?