domingo, 10 de abril de 2016

O Chá de Napoleão Democrata




Há muito papo-furado quando o assunto é o exército. Não há dúvida de que a força, por si só, não é um argumento, mas a estratégia militar se desenvolve nesse nível. Um dos pontos básicos dessa coisa é o de que, quando o soldado inimigo é capturado, não há mais nada a fazer. Napoleão, se não tivesse bem delimitado o que era a guerra, poderia ter destruído todos os camponeses. No entanto, se ele não o fez, é porque entendia que há uma diferença entre o ódio teórico, que é recomendável, e o prático, que convém sempre adiar. Não se deve tocar nem nas crianças nem nas mulheres a não ser para protegê-las. Quando invadidos, os russos, por sua vez, colocaram em prática a opinião metafísica de que a entrega é melhor maneira de se vencer. Se o intelectual põe fogo em tudo o que na sua vida é incompatível com o bem, não há dúvida de que, cedo ou tarde, a vitória será sua. O feminismo é um campo onde essa tática é particularmente eficaz, o que fica claro na história do chá.

Antes do século XVI, o chá era desconhecido na Inglaterra. Ele era cultivado na China, onde os homens o provaram e acharam que era leve o suficiente para ser uma bebida nobre. De fato, assim como o fumo, ele é algo que pode ser consumido antes e depois de qualquer refeição sem prejudicar o apetite, o que é conveniente para aqueles cujo ofício é gerenciar o trabalho alheio em reuniões longas. Aqueles que, mais embaixo na pirâmide, passavam a vida ao ar livre não se dignavam a distrair-se com beberagens de pouco valor nutritivo. Uma das primeiras cortes europeias que recebeu o produto oriental foi Portugal, onde, porém, ele foi somente uma moda passageira.

Alguns dizem que alguma resistência foi oposta. Antes mesmo de ser provado, ele chocaria as sensibilidades no seu novo ambiente, por conta de uma associação imaginativa ao ópio, um produto alucinógeno. No entanto, o boato de que ele prejudicaria a consciência só poderia ser aceito por aqueles que nunca ficaram levemente embriagados. Qualquer um que já sentiu a alegria do vinho sabe que é perfeitamente possível identificar uma alteração das percepções. Se, portanto, ao factoide da lombra do chá fosse acrescentado o juízo de que ninguém poderia saber se sonhava ou estava acordado, prová-lo seria uma temeridade. No entanto, não consta que o pessoal fosse ao mesmo tempo tão inimigo do álcool e tão crente no platonismo de quinta categoria segundo o qual o mundo é representação total.  Talvez fosse assim, mas seria preciso averiguar com mais cuidado antes de se divulgar uma opinião tão problemática. Platão ensinava que o mundo inteiro é uma representação somente enquanto dormimos.

O mais provável é que a demora para que o costume pegasse se devesse à novidade. No entanto, como foi adotado pela dieta dos grandes, o exemplo fez com que o chá se espalhasse. Catarina II de Portugal havia se casado com Carlos II da Inglaterra e levara consigo o hábito de bebericar o líquido para os palácios frequentados por seu marido. Uma questão interessante é por que a acolhida no país de Nelson foi maior do que na terra de Cabral. Talvez tenha sido que, no segundo, não havia uma bebida que fosse tão típica quanto o vinho no primeiro. Na Inglaterra, o chá preencheu um vácuo gastronômico que não existia em outras regiões.

No século XVIII, várias famílias bretãs alcançavam um melhor nível de vida com casas onde se vendia o requisito essencial para o chá das cinco. Entre os homens, porém, o costume de se reunir ao redor de um bule não era tão forte quanto entre as mulheres. De fato, quem já tinha a cerveja não precisava do néctar do oriente. As senhoritas, por outro lado, além do gosto, tinham uma razão ideológica para se reunir. As sufragistas, buscando que o direito de voto também se estendesse às saias, maquinavam as suas ações afirmativas entre um gole e outro. O chá era um símbolo da emancipação feminina. No entanto, ele não se resumia a isso, mas também era a ocasião de descanso em meio ao trabalho. No século XIX, de fato, reza a lenda que os empregadores da Inglaterra eram obrigados a conceder a todos os seus subordinados uma pausa diária para a conversa em meio aos aromas que um dia haviam sido estranhos e agora perfumavam os escritórios e as fábricas. 

Nesses intervalos e em outros, é muito possível que questão da finalidade do estado tenha surgido. Este ente imaginário, no entanto, não tem função alguma, mas serve somente para esconder quem detém o poder. O trabalho sujo de se meter nesses assuntos partidários tinha sempre cabido ao homem. No entanto, se as mulheres queriam dividir com eles ambos os fardos, não havia problema teórico algum. E mais: se, com esses novos deveres femininos, o cuidado da casa não ficava tão bem atendido quanto antes, o governo ganhava uma voz doce sobre um problema que a própria entrada das mulheres na vida pública havia criado: a educação dos filhos teria que ser terceirizada a particulares ou ao creches públicas. A hierarquia, no entanto, é ao contrário.
Vamos supor que exista uma república do chá. A aristocracia dessa cidade hipotética cuida para que não haja nenhum praga ou invasão inimiga que destrua as plantações e tenta melhorar a qualidade dos grãos. Abaixo deles estão os donos das terras onde o principal produto econômico é produzido. Eles, no entanto, não são em número suficiente para arar a terra, plantar as sementes e colhê-las. É imprescindível, então, que haja também empregados que façam esse e outros trabalhos. Todas essas funções são específicas e desempenhadas por homens. No entanto, nada impede que as mulheres sejam fortes o bastante. O que, porém, a modernidade fluida decreta do alto de suas cátedras é que não existe especialização dos papéis sociais, o que acabaria com qualquer feminismo. 

Como se não bastasse esse despropósito, a ideologia do gênero elimina a única coisa concreta digna do apreço geral: o bom senso aprendido através da mãe. Está aberta a porta para a tecnocracia, onde, embora se produzam muitas bebidas aguadas, ninguém mais trama revolução alguma contra os crimes legalizados. Seria, de fato, uma experiência interessante - e não só para o Sr. Fachin do STF– se cada município tivesse a liberdade para ser radical a favor da vida e da família. Isso, na longa fila das infinitas e justas reclamações femininas, é anterior ao direito ao voto. O estado é o lugar onde Napoleão se sente em casa, mas a mulher dele, com certeza, teria preferido passar a vida toda em Santa Helena.

sábado, 2 de abril de 2016

Falácia da Parabólica



O presidente da república tem foro privilegiado no STF se o crime for comum e no Senado se for de responsabilidade. Em 1992, houve uma tentativa frustrada de submeter os altos dignatários acusados de homicídios e roubos também ao Senado Federal. Dentre os sempre diversos pareceres sobre tema, no entanto, a opinião mais douta era a de que os delitos eventualmente cometidos pelo chefe do poder executivo continuavam sendo de duas naturezas: comum ou de responsabilidade. O chefe da nação também tem vida privada. E é assim até hoje. Matar, portanto, não explicaria juridicamente o impedimento. A diferença entre os dois tipos está no elemento político. Tirar a vida de alguém é um crime comum, que não necessariamente interessa ao rumo geral da nação, e não deve assim também ser julgado pelo poder de Sarney e companhia.

Que o juízo de admissibilidade dependa do legislativo mostra que a política deliberativa  é superior à técnica dos advogados, e que, portanto, Aristóteles estava correto. A instauração de qualquer processo requer, de fato,  dois terços da câmara dos deputados. No entanto, como não há diferença entre os dois tipos de processos, por crime comum ou por crime de responsabilidade, a bipartição das naturezas fica comprometida. Essa diferença legal, no entanto, também se submete a uma razão política. Se o presidente da república tivesse cometido um crime jurídico em nome do bem comum, não haveria como condená-lo. Com efeito, Maquiavel, que não era bobo, dizia que, se a república está em jogo, os fins justificam os meios. No entanto, nem sempre é assim.

Há bens que tem razão de fim. Toda a sociedade está ordenada a produção de riquezas. Não há dúvida de que, economicamente, é melhor o consumo do que a estagnação. No entanto, há várias coisas que não tem preço, a primeira das quais, numa democracia, é a honra do povo. Estar submetido a um chefe de governo disposto a negociar o Brasil em troca de mais parabólicas é inadmissível.