sábado, 17 de outubro de 2015

A Causa do Elefante

 

Alguns amam platonicamente o pensamento, enquanto outros o utilizam. Muitos acham por exemplo que fazer ciência nada mais é do que refutar os consensos da comunidade acadêmica. Mais adiante, todavia, alguém os refutará e assim por diante numa história sem fim. Isso é tão proveitoso quanto brincar de carrossel. Outros, um pouco diferentes, acham que a única utilidade possível é prática. Os marxistas, coitados, acham que as leis de herança são feitas não por uma questão de justiça, mas sim para, na prática, perpetuar as diferenças de classe. Essa sua doutrina tem o mesmo efeito que entrar numa casa e roubar o cofre. A diferença é que, dita por um professor, ela tem os foros da pedanteria, e, realizada por um ladrão, ela é motivo de cadeia.

Embora o bom senso não recomende a cobiça dos bens alheios, andar de carrossel é uma atitude muito humana. Nenhum outro animal é capaz de se dedicar desinteressadamente ao prazer de encontrar erros nas teorias alheias. O professor Gerardo Furtado, que pratica esse passatempo há décadas, é um exemplo para o resto da humanidade. Recentemente, ele descobriu que a Teoria da Evolução escorregou em algumas de suas afirmações. Isso não é de se admirar, pois toda essa parte da biologia não é mais que um grande casca de banana. Qualquer explicação que coloque tudo na conta do acaso nem chega a ser científica. Se, suponhamos, um elefante aparece na sala do professor Gerardo, ele, depois de um instante de embasbacação ante a beleza do mamífero, perguntar-se-á: “Mas o que trouxe este bicho até aqui?” É uma questão perfeitamente compreensível. Não o é, todavia, a resposta de que o bichano apareceu ali sem causa alguma: ou pelo puro capricho do destino ou pela improvável coincidência matemática, que são o mesmo. Se algum obscuro medieval conjecturasse que o ser que quebra a rotina do professor Gerardo chegou ali por levitação, ele estaria mais próximo da verdade do que o evolucionista que se contenta com o ainda mais aéreo acaso. A teoria mística seria algo que pelo menos poderia ser testado pela experiência.Elefante na Sala 

Cientistas, no entanto, alegram muito mais a vida dos seus alunos do que um elefante que por mero acaso se materializasse sentado no seu sofá. Depois de muito meditar no assunto, alguns chegaram à conclusão de que a diferença específica do homem é a linguagem. Isso já foi dito por Aristóteles, mas um cientista não se baseia na autoridade de ninguém que não seja a dele mesmo ou a de seus pares contemporâneos. O professor Gerardo vai além da teoria dos antigos, chegando inclusive a encontrar a propriedade que, dentro da linguagem, seria a peculiaridade humana: a gramática. É admirável essa eureca! O homem, dentre os outros mamíferos, é o único que segue as regras de sintaxe. Os beija-flores, com efeito, estão pouco se lixando para elas. As regras, todavia, não serviriam para nada se não fosse aquilo que Guimarães Rosa contou sobre Miguilim, o menino que “soprava as mãos num azado de consolo.”

Miguilim buscava em si mesmo um refrigério que aliviasse os incômodos da vida. Seu ato assim é perfeitamente compatível com o o princípio da primazia do prazer, já que levantar as mãos até a altura da boca não é um trabalho maior do que o benefício de ser consolado. No entanto, um urso que coçasse as próprias contas seria capaz do mesmo tipo de cálculo. O que torna Miguilim especial, todavia, é que sua resposta à realidade nem sempre é um reflexo condicionado, típico do ser que vive de regras, sejam elas as inscritas na sua natureza, sejam as da gramática ou as da Constituição Federal. Quando seu pai lhe trata pior do que um cachorro, e Miguilim teria todo o direito de matá-lo, ele se abstém. Ao tomar injustamente uma tunda de seu pai, Miguilim sentiu tanta raiva que sequer chorou. Se ele, nos recônditos de Minas Gerais, seguindo a regra do dente por dente e olho por olho, devolvesse a surra paterna , dificilmente sofreria alguma punição, e as consequências temporais do ato seriam mais positivas do que negativas. Segundo a lógica utilitarista, portanto, a ação valeria a pena. Buscar somente o útil, no entanto, é o único moralismo dos hedonistas. Miguilim não mergulha de cabeça no mal pela simples razão de que há certas coisas que, por mais benefícios que tragam, nunca devem ser feitas. O homem é o único animal capaz de, controlando-se, não cair na esparrela do utilitarismo.