domingo, 26 de outubro de 2014

A Hierarquia Natural

Todos nós já ouvimos que a ciência é um juiz severo. De fato, é repetido quotidianemente que por exemplo a teoria do desenho inteligente não serve como ciência porque não contém uma tese falseável. Isso, é claro, é falso, pelo menos numa das acepções do conceito, que por sinal é a que eu adoto. O mundo não foi feito por um criador necessariamente, do mesmo modo que um quadro não é necessariamente pintado por um artista. O sorriso da Monalisa não se segue como uma consequência lógica da habilidade de Leonardo da Vinci. Ele o desenhou caprichosamente, porque quis, não porque se viu obrigado a isso por uma necessidade inominável. Os deterministas são místicos que acham que qualquer ação humana é decorrência de possessão de um deus chamado acaso. Com o mundo, porém, a coisa é diferente. Há aí um outro mistério, que, se a teoria do desenho inteligente quiser realmente explicar, dirá simplesmente que se trata de uma mistério claro como a luz do sol. O óbvio é que o sol brilha não por acaso, mas sim porque as plantas e outros animais precisamos de energia. Há uma finalidade, que vai ao encontro de uma necessidade. Essa harmonia, que a teoria evolucionista não explica, é avantagem que alguns bons religiosos jogam no lixo ao colocar Deus num debate que, para Ele, não faz a menor diferença.

A teoria da evolução, cujas teses se multiplicam tanto que é impossível a um biólogo enunciar uma ser atacado pelo biólogo ao lado, conta ainda com alguns defensores zelosos. Um deles é o professor Gerardo Furtado, que afirma que o conceito de ascendência comum não é aceito por uma questão de psicologia. Seria muito difícil para o homem conviver com a ideia de parentesco com o chimpanzé. Eu particularmente não vejo nenhum problema nisso. O que me incomoda porque é falso é a inferência de que não há hierarquia entre dois primos. Quem quer que tenha visto como o mais velho acaba fazendo naturalmente o papel de líder decidindo, por exemplo, que a brincadeira do dia será um tiro ao alvo na goiabeira do quintal percebe a falsidade da opinião. Que um cientista não tenhaexperiência dessas irrelevantes atividades ou que já as tenha esquecido não érazão para se negar o óbvio. A outra inferência precipitada é um um pouco mais complexa.

Os antigos achavam que havia uma scala naturae. O latim é uma língua traiçoeira para os biólogos. Muitos, lendo o termo e querendo entender o conceito, julgam que se trata de um dado de conhecimento próprio. O homem, vendo-se com o poder sobre as demais criaturas, teria imaginado uma pirâmide em que ele mesmo teria se colocado no topo. O ponto, porém, é que essa ideia não surge num contexto humanista. Os que a defenderam eram biólogos, e é na observação do reino animal que sua compreensão acontece. Mas o latim, como eu dizia, é uma língua que pode confundir os que lhe dedicam somente o tempo que sobra das suas atividades científicas. O genitivo naturae não significa apenas uma posse, como se a hierarquia fosse uma propriedade que mãe natureza adquiriu no supermercado. Ele significa antes de mais nada a origem sensível da organização. A ideia de um mundo que vai se estruturandodo mais elementar para o mais complexo está patente, dentre outros lugares, na sociedade das formigas, em que a maior tem uma ascendência natural sobre a menor. 

A biologia evolutiva atual, no entanto, não tem o instrumental filosófico necessário à compreensão de um fato que entra pelos sentidos. Tudo foi por água a baixo na refutação absoluta dodesenho inteligente. Do modo como ele é postulado pelos protestantes, de fato, ele não é falseável, porque foge completamente ao senso comum, que é um pré-requisito da opinião. No entanto, a causa final é um conceito tão natural, que não pode ser deixado de lado numa explicação sobre variedade dos animais. O dilúvio, no entanto, não se contentou com submergir esse conceito, mas também acabou por apagar a linha que divide as humanidades da biologia. A ideia de hierarquia natural não tem o homem no topo da pirâmide, a não ser, é claro, que ele seja um asno.

Hierarquia das Formigas

sábado, 11 de outubro de 2014

A Tolerância de Olhos Abertos

A justiça costuma ser simbolizada como uma mulher com os olhos vendados. Seria uma falsidade afirmar que a justiça brasileira, fazendo jus à simbologia, tem tomado as suas decisões no escuro. No entanto, é fato que quando alguém lá dentro resolve abrir os olhos, como fez Joaquim Barbosa, e dizer claramente qual é a sua opinião, muitos reagem como se um ídolo sagrado tivesse sido profanado. É como se estátua tivesse levado a mão ao rosto, tirado a venda e piscado aos adoradores da cegueira. Eles gritaram espavoridos para que ninguém mais ouvisse qual seria a sentença. Mas o assunto de hoje não é propriamente a justiça brasileira, mas uma ideia perniciosa que vem voando desde o Velho Mundo e aterrisa em terras tupiniquins. Os ingleses parecem querer que não só a velha justiça, mas também a nova tolerância seja cega.
A pergunta a que a The Economist responde negativamente essa semana é: as escolas religiosas podem adotar como requisito para contratação de um professor que ele confesse a mesma fé da instituição? Ora, não há nada de estranho nisso, visto que qualquer empresa tem sua filosofia, e qualquer um que não concorde com ela cedo ou tarde terá problemas para se manter no emprego. A diferença é que nos casos onde a confissão religiosa é testada de antemão, a situação é mais clara. Não há instituição digna do nome que não tenha um modo próprio de ver a vida. Se ela é capaz de enunciá-lo em tão poucas palavras quanto as que contém, por exemplo, o Símbolo dos Apóstolos, melhor ainda. Isso  não é intolerância, como alguns prontos a repetirem clichês dizem. É exatamente o oposto. É simplesmente tolerar que os pais possam dar a seus filhos a educação que bem entenderem. Os contrários a isso são sempre pessoas práticas que não percebem a importância de uma filosofia explícita de vida. Para eles, como tanto faz se alguém tem esta ou aquela teoria, o critério parece discriminatório no sentido ruim da palavra. Porque, é claro, discriminação tem dois significados. Um é traçar uma linha que divida os homens entre bons e maus, aptos e inaptos, dignos e indignos com base em algo que não tem a nada a ver com bondade, aptidão ou dignidade, por exemplo, a côr da pele. O que, porém, uma escola, digamos, católica, faz ao exigir de seus professores uma profissão de fé e uma conduta minimamente compatível com essa fé é distinguir ideias. E essa discriminação é muito boa.
É aliás um requisito para que uma sociedade seja plural. Porém, se as ideias não podem ser transmitidas aos outros no estado o mais puro possível, insisitir que a sociedade precisa de pluralidade não passa de uma vã repetição. O que os partidários da tolerância cega querem dizer é isso: As crianças não precisam de uma filosofia de vida. A missão da escola é simplesmente torná-las aptas a ingressar no mercado de trabalho e  contribuir assim para o bem comum. Como o trabalho pode ser desempenhado sem que alguém tenha uma teoria sobre qual é seu significado para si, para os outros e para Deus (que, diz o pedante, talvez nem exista), a exigiência de confissão religiosa por parte dos professores é um arbítrio da direção da escola. Essa é uma teoria perfeitamente aceitável, desde que a contrária a ela também o seja.
Há, ainda, dentre os partidários da tolerância cega os que não instrumentalizam a educação vendo-a como uma mera preparação para o trabalho. Eles julgam, e estão certos, que a escola é um bem em si. O que esses querem dizer ao falar de discrinimação é isso: A função do colégio é formar pessoas eclarecidas. Alguém será tão mais esclarecido quanto for maior a diversidade de opiniões com que tenha contato. Logo, a escola que tenha os professores mais diferentes poderá proporcionar a melhor educação para seus filhos. Essa teoria é verdadeiramente teórica. Mas não é possível impingi-la aos pais das crianças, que podem muito bem achar interessante que seus filhos, antes de entrar em contato com mil filosofias diferentes, tenham um critério seguro para julgá-las. O pai que quer ensinar ao filho o seu modo de ver a vida é como o pai de Hamlet, que lhe dá um sentido para a existência. O  genitor que, ao invés disso, quer colocar o filho em contato com o maior número possível de opiniões, termina fazendo dele um Laertes, que não aprendeu de seu pai senão a como se portar  no mundo como alguém bem educado no sentido ruim da palavra, isto é, como alguém que é inofensivo por ser insosso.  No final, o único pensamento do infeliz será que todas as filosofias estão certas. Mas, se é assim, então a afirmação que só uma filosofia de vida é certa também é verdadeira. E o fato é que é assim mesmo. O próprio Cícero, que era um liberal avant-la-lettre, percebeu que a abertura de mente pode até ser útil como método, mas não é coerente como filosofia. Usar a cabeça é discriminar o que é verdadeiro do que é falso de uma vez por todas.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Fatos

Os leitores da Folha foram agraciados com um debate interessante entre JP Coutinho e Hélio Schwartzman. O primeiro afirma que é irresponsável que um cientista se pronuncie sobre Deus. O segundo diz que irresponsável é acreditar em Deus. Ser árbitro oficioso de discussões alheias é sempre uma tarefa ingrata, e mais ainda quando se trata de jornalistas que desempenham seu ofício com inegável envergadura filosófica. No entanto, nada impede que um pigmeu assista a um embate de gigantes e declare vencedor aquele que terminou de pé. E, no caso, não há dúvida que o vencedor é João Pereira Coutinho. A opinião de Schawtzman diz simplesmente que não se pode provar cientificamente que Deus exista. Isso, porém, só acontece por conta do preconceito científico contra os milagres, que são fatos.

O problema é que desde Francis Bacon a ideia de fato ficou reduzida àquilo que é produzido pelo homem. Se, pois, a ciência só se preocupasse em dar explicações de construções humanas, qualquer fenômeno que por definição não pode ser realizado pelo homem ficaria de fora. Em outras palavras, a ciência não poderia se pronunciar sobre milagres porque se trata de algo alheio ao seu âmbito de estudo. Mas o fato é que a ciência nada mais é que uma técnica de produzir utilidades, o que é sem dúvida muito bom, mas não é o que pode dar uma resposta à dúvida sobre a existência de Deus. O caminho para isso são as cinco vias de São Tomás de Aquino. Essa no entanto parte do pressuposto filosófico de que sequência causal não é um círculo, mas sim uma pedaço de reta, ou seja, que o mundo começa e acaba.  Os doutos que discutam sobre o assunto e aquilatem o valor da premissa, mas o ponto é que de fato não há nada no mundo seja eterno à exceção da cidade eterna.