segunda-feira, 24 de outubro de 2016

As Duas Democracias



Os matemáticos são pessoas tão focadas que perdem a capacidade de ir de um conceito para o vizinho. Nas ciências humanas, porém, dançar entre a etimologia e o significado é uma habilidade sempre a ser conquistada. O termo democracia, por si só, não diz mais que o governo da maioria. A maior parte do movimento democrático atual, porém, sonha como uma espécie de técnica social que substituiria o significado de poder do povo pela garantia de que os grupos diversos não se aniquilem uns aos outros, mas acabem com qualquer maioria.

De fato, ninguém apela para o critério quantitativo, que ganha vida nas assembleias dos cidadãos, onde a posição que contava com mais votos, fosse ela qual fosse, seria a aceita. E o Olavo de Carvalho também não o faz porque ele não é bobo. E também, imagino, porque a verdade é que há muitas razões para abandonar a ditadura da superioridade numérica. Talvez as melhores são para que as diferenças, que não são más em si mesmas, sejam respeitadas e para que a sociedade seja preservada como um espaço de convivência que não se reduza à mera concordância. Alguém precisa escrever ou me indicar um estudo liberal sobre esses fatores. Uma opinião, no entanto, é impossível. Se a conclusão mostrar que de fato a maioria é uma opção superior à tecnocracia, quase ninguém das humanidades o levará a sério.  E a razão da turminha eu já dou aqui, porque é tão fácil quanto qualquer tautologia: um governo não científico, gente, não é científico.

domingo, 2 de outubro de 2016

O Enigma dos Anões




“Os talentos desse ‘caleidoscópio da vida’ 
devem se adaptar à evolução do mercado e do mundo.”
Biólogo Evolucionista
(Disfarçado de Administrador de Empresas)

Onde o talento é um anão,
A autoestima é um gigante.
Seu Lunga
(depois de aprender na FFLCH como dar indiretas)


Na prática, a comunidade nem sempre deixa o trabalho intelectual ser possível. Mas o principal defeito do pragmatismo é, diante da primeira aporia, jogar a toalha, como se toda a história da ciência fosse uma sucessão de contradições, e a única solução fosse descobrir o consenso da galera. Uma ideia sempre tem algo a ensinar, ainda que não seja uma explicação perfeita. A discriminação, por exemplo, que teria sido refutada pelos estoicos, ainda contém uma lição indiscutível. É, portanto, inaceitável a afirmação de que a situação da Colômbia é complexa demais para ser entendida. Alguns bandidos querem o direito de ser cidadãos e, no entanto, eles merecem no máximo a tolerância de não serem presos. Se a maioria da população quiser sacrificar a sua tranquilidade em troca de inclusão, trata-se de um ato heroico de liberalidade, próprio de um rei.

E qualquer um que teve um pai sabe quem é o rei da floresta.  Há, no entanto, várias maneiras de entender o significado disso. É possível, a partir daí, afirmar que o leão tem o domínio sobre os demais animais de dois modos. Ou - o que seria falso - ele impera pelo medo, ou, como aconteceu com as formiguinhas lá de casa, ele tem o reconhecimento dos demais. Da mesma maneira, quando alguém, adulterando a séria tradição das fábulas, diz que não é a juba o ápice a criação, há também algo vago que precisa ser definido. Se não é ele, é a turba. Ninguém, no entanto, sabe quem ela é, e o máximo que eu posso fazer aqui é identificá-la como a tal da opinião pública.

No entanto, nem todos são como Thomas Bastos e buscam convencer com as palavras. Há outros que, como Marcola, ameaçam arrasar com as armas. A hierarquia é clara entre esses dois modos de ir pela vida, já que a violência é inferior mesmo à mais baixa das retóricas. De qualquer maneira, entre essas duas maneiras de ser há algo em comum. Ambos, de certo modo, tentam fazer com que a interesse de um certo grupo prevaleça. Existe, no entanto, um âmbito que é mais conturbado do que o do causídico e o do seu cliente: o da medicina. Aí pode haver uma conflito interessante entre o doce paciente e o seu doutor.

E é precisamente aí também que reside o argumento da diferença, uma realidade que, silenciada pela ideologia do gênero, tem causado algum estrago. De fato, poucas vítimas têm sofrido tanto na mão da opinião pública quanto a discriminação, esse hábito terrível de perceber que um picareta é um picareta e que nem todo trabalho marretado é acochambrado. No entanto, seja-me permitido um anacronismo para explicar a coisa. Se, quando o Brasil sequer existia, um índio defendesse que a melhor dieta para um colega de tribo era uma erva de gosto amargo, ele estaria em maus lençóis. Se, por acaso, ele ousasse  dizer que era necessário torturar o paladar de alguém que já estava doente, a turba talvez ficasse escandalizada com tamanha desfaçatez em propagandear o mal. No entanto, se a erva amarga fosse um remédio, a discriminação salvaria uma vida. Essa fábula, no entanto, eu temo não ser só um anacronismo, mas também uma falsidade atual.

Tratar todos como iguais, assim,  é viver no tempo dos aborígenes. Outra discriminação imperiosa se dá quando o tema é a saudade, um dos sentimentos mais caros aos fãs do fado.  Quando um marinheiro deixava o Tejo para se divertir na América, ele deixava nos olhos lacrimejantes das mães a marca de uma ausência. Nunca existiram, porém, duas nostalgias idênticas, porque as presenças tinham sido distintas. E isso é óbvio porque, embora o mesmo fado seja cantado por duas senhoritas, as verdades por detrás de qualquer poesia não são as mesmas. De fato, não existem duas pessoas iguais, alegres ou tristes. Assim, da próxima vez em que alguém citar Tolstoi para dizer que cada família é triste à sua maneira, o melhor a fazer é lembrá-lo que qualquer ser pessoal, sorridente ou choroso, só é se for do seu jeito.

No entanto, a discriminação não está presente só na distinção que separa a saúde da doença e a lembrança da vaga ideia de que algo foi perdido. Há empresas e universidades que se acham no direito de julgar a disciplina dos outros. E o parâmetro do juízo algumas vezes não é - sinto informar aos ingênuos - a moral universal. Pelo contrário, o critério para saber se um funcionário é bom ou não é o interesse da própria coletividade, que tem a força de um imperativo categórico. Assim, aplica-se a esse tipo de situação o que Nietzsche dizia acerca da fonte da ética. Para ele, a moral sempre diz de si mesma que ser a única origem do certo e do errado. A moral, portanto, louva-se a si mesma como causa incausada, o que seria estranho.

Isso, no entanto, não chega a ser uma aporia, porque só é possível saber que a moral deveria ser condenada porque ela mesmo nos deu, antes, o argumento a favor da humildade, uma amostra clara de falta de amor próprio.  Além disso, muitas vezes as pessoas aceitam que avaliem o seu desempenho. A autocrítica não é possível na situação atual da humanidade, quando o interesse na própria imagem é forte demais. E a solução é, portanto, que o chefe exija algumas melhoras antes de mandar o emprego passear, porque, enfim, assim talvez o que não nunca deverá ter acontecido não aconteça. No entanto, convém que esses milhares de pequenos empreendimentos não se destruam a si mesmos confundindo a dificuldade de conhecimento próprio com o atrativo de ser besta.

Ser besta é bom porque se o próprio funcionário fala mal de si mesmo, não é necessário mais nada  para negar um aumento salarial. No entanto, o obstáculo da autoavaliação é duplo: ele não só impede o reconhecimento dos próprios defeitos, mas também torna mais complicada a apreciação dos próprios méritos. E, se nem o chefe percebe isso, um funcionário que seria ótimo em outro lugar vai embora. Quando Maquiavel afirma ser a república superior à monarquia, este é o seu assunto. A flexibilidade do primeiro tipo de estado permite que o problema não seja resolvido somente de uma maneira, mas sim de várias. O príncipe, porém, é incapaz de aceitar que outro toque no leme da embarcação.
Uma vez devidamente morto o déspota, é um erro achar que, no regime que o sucede, todos querem governar. Ter um cargo de governo é viver de correria em correria, algo bárbaro. Quando a Pandora - protótipo do Spotify, e ninguém se lembra dela - cresceu, alguns dos fundadores debandaram. Eles não aceitavam ditar a vida de outras pessoas. A vontade de permanecer pequeno e não escalar na pirâmide social é algo mais radical do que ser besta. Enquanto esta acha que é só desagradável dizer não às pessoas quando elas já não são interessantes, o desejo dos anões simplesmente não admite sequer estar na posição de ter que fazer isso. A aporia dessa questão, no entanto, é tão grande que ela se transforma num enigma. É impossível saber se os pequenos desprezam o ato de governar os outros porque eles temem ser descobertos como príncipes ou porque eles simplesmente teriam uma tarefa diferente para realizar. Portanto, da próxima vez em que você quiser ter um bom sentimento e sentir pena de um marquês em traje de plebeu, é bom estar alerta: há certos erros que foram planejados.