sábado, 25 de março de 2017

A Ditosa Queda de Um Esnobe

O esnobismo é um fenômeno demasiado recorrente. Ignorá-lo, como se ninguém o praticasse, poderia redundar num resultado quase imperdoável. A ciência do equívoco começa por um desejo emprestado. O titular original dessa vontade é uma pessoa de uma classe social superior ou de um país mais desenvolvido. A hierarquia de classes ou de pátrias, nesta época de igualdades, não existe. No entanto, o esnobe ainda não percebeu que a Revolução Francesa triunfou. E o desejo de parecer mais do que é molda a sua própria identidade, fazendo com que ele seja, de verdade, uma peça de museu ambulante. Faz parte do engano que ele ache viver numa época antiga, em que a hierarquia ainda estava clara.
 
Para entendermos como o que uma pessoa é pode variar segundo suas concepções, é necessário tentar perceber o seguinte. O que o "eu" é depende, nos adultos práticos, do que ele acha que é. A opinião do "eu", por mais falsa que seja, pode ser tida por ele como uma verdade programática, um projeto profissional, uma ambição. Um erro cínico sobre a sociedade de alguns dirigentes nazistas começa por um erro sincero acerca da própria identidade. O indivíduo esnobe precede o indivíduo sacrificial.

Trazendo o assunto para mais perto, podemos constatar que, dentro de casa, tudo pode cheirar a esnobismo. O sujeito pode inclusive, numa mesa de almoço, citar em alemão. A diferença crucial entre o esnobe e o cara normal depende da resposta que se dá à seguinte questão: a ausência de citações tupiniquins é devida a falta de estudiosos que se debruçaram sobre seu assunto específico? Se sim, não há nada de errado, desde que se siga uma tradução. Ser um aristocrata do intelecto traz consigo a necessidade de parecer pelo menos um pouco esnobe ou, como diria um amigo meu plebeu, um intelectualóide.

O problema surge quando o esnobismo é inconsciente, e os convivas, ah, não entendem o que foi dito. No entanto, não há nada que seja tão caricato quanto um esnobe que ainda não passou pela conversão mimética, que faz com que a origem individual do desejo seja colocada à mostra. Isso, obviamente, não salva por si só ninguém, mas torna tudo mais fácil de se entender. Um dos exemplos de esnobismo dado por René Girard em Evolução e Conversão é o da esposa de Marmeladov, personagem de Crime e Castigo. Ela luta por manter as aparências em meio a uma Rússia transbordante de crises existenciais generalizadas, dramáticas, hiperbólicas e verdadeiras. Não se trata só de ausência de dinheiro, mas também de falta de qualquer perspectiva de um trabalho decente. A madrasta de Sônia não sabe o que fazer para manter a família, embora houvesse alternativas mais viáveis que a prostituição.

Nesse aspecto, não podemos, de fato, colocar a girardidade e o idealismo alemão, típico de Kant por exemplo, na mesma sacola. Ainda que em Kant essa atitude não atinja o paroxismo, a ideia de que um elemento da alma teria uma consistência ontológica é próxima demais. Ela carece de uma distância temporal. Quem foi criança um dia sabe que há uma diferença muito grande entre acreditar em Papai Noel e, depois, ser chocado contra a experiência. De repente, tudo se encaixa e é uma maravilha! Estamos com os pés firmes na terra.  Da mesma maneira, há uma distância que separa o inconsciente girardiano daqueles de cunho totalizante. Para o intelectual francês, usando os termos da gnoseologia realista e sem nenhum matiz ético necessário, a inconsciência faz parte de uma ignorância vencível. A condição é que a natureza mimética do desejo seja desmascarada, aceita e bem manejada. Quanto a isso, eu não tenho dúvidas de que René Girard está certo.

Um exemplo belo de passagem do esnobismo à normalidade é o poema muito simpático "The More Loving One" de Auden. Antes de mais nada, é bom afirmar que a inspiração, tal como sugerida por Platão, não é um dado cognoscível. O poeta não entende necessariamente que o cantado é um aspecto da teoria girardiana. O modelo inalcançável de Auden, nessa poesia, é simbolizado pelas estrelas que, infelizmente, não se importam com ele. Aqui embaixo, no entanto, a situação é diferente. Várias pessoas têm um influxo sobre ele. A resposta despertada, no entanto, não é de alegria, mas sim de temor. Será isso por ressentimento? Talvez. O fato é que o último verso da primeira estrofe, terminado antes que os outros, marca o silêncio de um presságio catastrófico.

O poema, porém, segue com uma nota de esperança. Refletindo sobre a possível desaparição de todas as constelações, Auden diz que tampouco daria a mínima. Ele retribui indiferença com indiferença. Mas, como o modelo que pairava alto demais desapareceu, Auden agora já é capaz imitar alguém que lhe é próximo. E ele passa a ser, por sua vez, um modelo acessível.


The More Loving One


Looking up at the stars, I know quite well
That, for all they care, I can go to hell,
But on earth indifference is the least
We have to dread from man or beast.

How should we like it were stars to burn
With a passion for us we could not return?
If equal affection cannot be,
Let the more loving one be me.

Admirer as I think I am
Of stars that do not give a damn,
I cannot, now I see them, say
I missed one terribly all day.

Were all stars to disappear or die,
I should learn to look at an empty sky
And feel its total dark sublime,
Though this might take me a little time.”