- Olá, seu Marcelo!! Tenho o palpite de que você tem muita dor na perna. Acertei?
- Doutor, eu já lhe disse que estou bem, pronto para ir embora.
- Mas e os rins: funcionam direito?
- Sim, nenhum problema.
- Mas o senhor deve pelo menos ter tossido bastante…
- Meus pulmões estão ótimos.
- E por quê, então, o senhor está com a cara feia?
- Muito simples, doutor: desde que cheguei aqui, a minha única atividade tem sido contar, quando acordo, os fios de cabelo que ficam no travesseiro. Eu não aceito isso!! E mais: se estou entediado, a culpa é do hospital, que não me libera!O médico, desconfiado de que o paciente tenta engabelá-lo, vai embora e não lhe dá alta. Bezerra-e-Bezerra é declarado doente porque ainda não descobriram a sua doença. Embora não seja perito na disciplina de Esculápio, ouso afirmar ser fato que a perturbação do nosso amigo se deve à língua presa quando o assunto é a dor. No entanto, o médico não compreende algo que os manuais da faculdade deixaram de ensinar. Ele está doente porque há dias não conversa sobre nada que não seja a própria ruína, e ele precisa de outros temas como a malícia dos políticos. Se ele saísse, ficaria melhor. Há, de fato, algo simplório sobre a personalidade de Marcelo Bezerra e Bezerra que os doutores teimam em não aceitar. Ele não quer enganar ninguém, nem se nega a receber o tratamento. Ele só gostaria de exercitar aquela arte que anda esquecida desde que a piada foi tornada oficial e, portanto, chata. Ele quer reclamar.
Sim, desde que os cabelos começaram a se despedir da cabeça de Bezerra e Bezerra, ele não está para ditos engraçadinhos. Ele gosta de posar de sério e não deixa de elaborar um discurso em consonância com a sua tragédia capilar. “A salvação do mundo depende de uma melhora do nível de moralidade, que está abaixo como estava a represa de Guarapiranga e não há chuva que dê jeito!”, ele repete para si mesmo e para quem é temerário o suficiente para cruzar o seu caminho. Ao mesmo tempo, porém, ele tem uma particular afeição pela injustiça dos outros, porque, sem ela, ele não seria a vítima cósmica. Ele poderia até se vingar, mas diz para si mesmo que isso seria grosseiro. Em última instância, porém, a visão predominante é a de que os deuses o invejam porque ele se mantém incólume no meio de um mar de iniquidade. E nada, de fato, é tão belo quanto um homem pelagiano, sem culpa, que atrai sobre si a ira do mundo inteiro. Bezerra e Bezerra é um trágico que, ah!!, chegou atrasado!
Ele, porém, ainda não assumiu a sua calvície, sem a qual a sua querida desgraça não teria começado. A Tuba – cuja função social é tornar feliz qualquer imprudente que resolva perder tempo com ela, seja ele quem for - fornece um remédio pagão para uma doença pagã. A arte da tragédia nada mais é do que saber esperar passar o triste canto das sereias. A propaganda em questão é o blá-blá-blá segundo o qual as pessoas se importariam mais com a juba do que com quem Bezerra e Bezerra é. Nessa matéria, não há ninguém tão hábil quanto Ulisses. O herói homérico foi cantado não só pelos gregos, mas também por um surfista carioca muito tranquilo, que é um discípulo moderno de Alberto Caeiro. De posse de um manuscrito que lhe chegou numa das ondas, ele verteu livremente para sua língua a tristeza moderada de Ulisses, que o levou não à loucura de agir, mas, muito pelo contrário, a ficar parado por algum tempo na rota traçada antes que a fúria dos elementos despencasse sobre a embarcação indefesa.
Os Cabelos Que Ficaram Para Trás
A linha entre o ser feio e ser gozado
É uma diferença bem pequena
Que eu descobri uma vez, já cansado,
Nas doces areias de Saquarema.
O grande esforço, já extenuado,
De pescadores sem nenhum problema
Que não se resolva pelo que é dado
Pelo mar, sem carência de esquema,
Encontrou um tesouro na areia
Como um prêmio-extra por seu trabalho:
Eram jóias… que o tempo tornou feias.
- Há algo belo que seja perdoado?-
Perguntei. E o vento, na minha orelha:
- Ítaca! Onde a calvície é passado.