quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Identidade


Embora seja muito recomendado, não é preciso assistir ao Homem Que Não Vendeu a sua Alma para descobrir que o proverbial tudo tem um preço não passa de um eco, que, a cada repetição, torna-se mais fraco. Tudo que vale a pena, de fato, exige sacrifício. Mas é impossível colar um etiqueta dizendo qual é o valor de tudo. A identidade, por exemplo, é algo que os economistas jamais conseguirão determinar quanto vale. Francenildo, o porteiro que denunciou não faz muito as reuniões escusas de Antônio Palocci, cresceu sem saber quem era seu pai. Não há dinheiro algum que pague a falta de resposta para esse tipo de pergunta. Mas de certo modo, não são só aqueles que nasceram e foram abandonados os que buscam uma  auto-denifição. Todos, de um modo ou de outro, querem saber quem, afinal de contas, são. Toda a fortuna do mundo seria incapaz de dar cabo nesta pergunta.

O rei Lear de Shakespeare pergunta ao mordomo de sua filha Goneril, bromeando, quem ele, o rei, é. Toda brincadeira tem um fundo de verdade, e é bem possível que o ancião que depois elouquecerá completamente já aí denunciava  a desordem que lhe ia dentro. O achar que o mundo inteiro conspira contra ele – não só as filhas, mas também a chuva e os raios e os trovões – seria o sinal de que ele se tornou um mentecapto. Mas antes mesmo disso, ao rejeitar a declaração simples de Cordelia, que tinha a língua mais curta que o amor, e preferir a retórica das outras filhas, o rei cuja ira subiria aos céus manifesta o sintoma fatal: ele ousa revogar um ditame da natureza – o ser pai de Cordelia. Aqui se faz, aqui se paga. Se a indetidade da filha honesta é posta em cheque, a dele também será.

Teorias da conspiração, no entanto, nem sempre são paronóias. Outro dia, um amigo simplesmente não acretitava que poderia haver um conluio entre feministas e fundamentalistas islâmicos. De fato, são duas filosofias de vida completamente diferentes. Uma é a revolta contra as regras que privilegiam os homens. A outra é uma rebeldia contra todos os que não obedecem à regras. No entanto, ambos têm um inimigo em comum, que é a identidade ocidental. Não é que haja uma afinidade teórica entre os dois movimentos, mas simplesmente um pacto prático. O mesmo acontece com os muçulmanos moderados e radicais: não há entre eles afinidade de doutrina, mas existe uma cumplicidade que, se não fosse negada a cada ataque terrorista, seria tomada como um fato.

Entre nós, um personagem parecido ao rei Lear é um ex-funcionário do governo. Sua tarefa, na época no escândalo do Francenildo, foi divulgar o extrato que a Caixa Econômica Federal, sabe Deus em troca de quê, resolveu ceder ao ministro da economia.  É de admirar, portanto, que este mesmo senhor, um fiel servidor do partido que está no poder, um homem que não vê problema em enlamear uma reputação desde que essa seja a ordem que venha de cima, elogie o regime militar brasileiro. Não se trata, porém, de Lear. Não é a ingratidão que o leva a loucura de servir a um projeto de poder e ao mesmo tempo cantar loas a seu oposto. Ele segue a falsa lógica dos fins que justificam os meios. Se a caserna levou a economia do país para frente à custa da democracia, o resultado seria tão bom que faria esquecer qual foi o caminho percorrido até ele. Do mesmo modo, se o que está em jogo é o seu emprego, para conseguir isso ele não hesita em colaborar na difamação de um inocente.

Alguns afirmam, no entanto, que seria impossível determinar qual seja a identidade ocidental, uma vez que um de suas traços é a pluralidade. Há nela lugar para todas as visões de mundo: desde o xiita que adora Alá até o ateu militante, passando por todas as filosofias práticas, segundo as quais os assuntos metafísicos não passariam de uma criancice, de um estágio inicial da razão, de questões cujas respostas são arbitrárias como os caprichos do Joãozinho. A existência de Deus, no entanto, é um ponto incontroverso tanto na grande filosofia como na grande literatura. Os ateus até poderiam afirmar que não há sistemas metafísicos idênticos, mas seria um exagero afirmar que não há um mínimo de consenso, que, por sua vez, é capaz de fundamentar todas as diferenças que existam entre as religiões. No seu canto de cisne, Lear, reconciliado com Cordelia, diz que ela e  ele gastarão o resto da vida espionando os mistérios das coisas.  Isso só é possível se houver uma luz que os ilumine. E não é, como dizem os pigmeus, procurar, numa sala escura, um gato preto que não está lá. A imagem é antes a de um espião, cuja missão não pode ser cumprida se ele brada a sua identidade aos quatro ventos. Mas ele sabe quem é.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Evidências

A biologia evolutiva não goza hoje do mesmo prestígio de alguns anos atrás. Um dos argumentos que lançam contra ela, porém, não merece sequer dois minutos de consideração. É uma dessas reclamações que mais provém de uma indisposição fisiológica do que de uma busca calma e tranquila pela verdade. Um duelo científico é sempre um duelo de teorias sobre fatos de que ninguém discorda. E muitos dos que atacam a evolução hoje simplesmente não propõe nada para substituí-la, e se limitam a afirmar que a evolução nunca foi reproduzida em laboratório. Ela, de fato, não foi nem nunca será simplesmente porque é uma tentativa de entender o mundo como ele é, e não como seria possível forjá-lo mediante a técnica. Contra isso os biólogos militantes esgrimem com sucesso o argumento de que evolução preserva duas evidências: há várias espécies no mundo, e há uma hierarquia entre elas.

O que, porém, torna a teoria particularmente antipática é a definição moderna segundo a qual a evolução não seria nada mais do que uma mudança aleatória do código genético. Além do defeito mais grave dessa definição – nomeadamente, ela não mostra a atualização de uma nota diferencial dentro de um gênero -, ela não é falseável. Em outras palavras, ela sai do campo da ciência e entra no da filosofia, sem antes ter dado conta da finalidade do mundo natural. Uma mudança aleatória é um empreendimento de risco da natureza, como se nela não houvesse uma finalidade, como se as alterações substanciais no ser fossem mera coincidência. Quando Júlio César, às margens do Rubicão, disse que tudo daí por diante seria aleatório, o que ele afirmava é que a guerra civil é uma aventura em que tudo pode acontecer. No entanto, isso não passa de uma frase de efeito, porque é claro que o mais forte, numa guerra civil, sempre esmaga desgraçadamente o mais fraco. Não há aleatoriedade porque mesmo as coincidências são o encontro fortuito entre duas finalidades. E, sem isso, a complexidade maior de uma mosca em relação a uma pedra não seria explicada. Ou seja, uma teoria da evolução que busque abarcar todas as evidências, e não somente as genéticas, ou resolve o problema da finalidade, ou então reconheça que se trata de um ato de fé.

Isso só não ocorre por conta da crença de que para ser científico é necessário ser cético. Isso, alguém douto diria, é uma implicação necessária. No entanto, a ciência nada mais é do que uma tentaviva obstinada de explicar todas aparências sensíveis porque elas são verdadeiras. A ciência está no polo oposto do ceticismo, da indocilidade ao real, da teimosia de se aferrar a teorias furadas ou incompletas que destorcem o fatos e chegam ao absurdo de afirmar que não há diferença específica entre um homem e um macaco. Quem enganou a humanidade nesse ponto foi Platão, e por isso é compreensível a muito alta conta em que as teorias são tidas ainda hoje.

A hierarquia natural, porém, é algo observável não somente em seres humanos, mas também em outros animais. A matéria, à medida que se organiza, torna-se não mais complexa. A contribuição moderna para a biologia é a negação da geração espontânea, isto é, a afirmação de que as mudanças não acontecem por acaso ou por inércia, mas sim que há uma finalidade no processo evolutivo. Uma mosca foi o suficiente para convencer Redi da inanidade de uma opinião comum de seu tempo, mas sociedades inteiras de abelhas e formigas não são o bastante para persuadir os fundamentalistas da evolução.