quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Identidade


Embora seja muito recomendado, não é preciso assistir ao Homem Que Não Vendeu a sua Alma para descobrir que o proverbial tudo tem um preço não passa de um eco, que, a cada repetição, torna-se mais fraco. Tudo que vale a pena, de fato, exige sacrifício. Mas é impossível colar um etiqueta dizendo qual é o valor de tudo. A identidade, por exemplo, é algo que os economistas jamais conseguirão determinar quanto vale. Francenildo, o porteiro que denunciou não faz muito as reuniões escusas de Antônio Palocci, cresceu sem saber quem era seu pai. Não há dinheiro algum que pague a falta de resposta para esse tipo de pergunta. Mas de certo modo, não são só aqueles que nasceram e foram abandonados os que buscam uma  auto-denifição. Todos, de um modo ou de outro, querem saber quem, afinal de contas, são. Toda a fortuna do mundo seria incapaz de dar cabo nesta pergunta.

O rei Lear de Shakespeare pergunta ao mordomo de sua filha Goneril, bromeando, quem ele, o rei, é. Toda brincadeira tem um fundo de verdade, e é bem possível que o ancião que depois elouquecerá completamente já aí denunciava  a desordem que lhe ia dentro. O achar que o mundo inteiro conspira contra ele – não só as filhas, mas também a chuva e os raios e os trovões – seria o sinal de que ele se tornou um mentecapto. Mas antes mesmo disso, ao rejeitar a declaração simples de Cordelia, que tinha a língua mais curta que o amor, e preferir a retórica das outras filhas, o rei cuja ira subiria aos céus manifesta o sintoma fatal: ele ousa revogar um ditame da natureza – o ser pai de Cordelia. Aqui se faz, aqui se paga. Se a indetidade da filha honesta é posta em cheque, a dele também será.

Teorias da conspiração, no entanto, nem sempre são paronóias. Outro dia, um amigo simplesmente não acretitava que poderia haver um conluio entre feministas e fundamentalistas islâmicos. De fato, são duas filosofias de vida completamente diferentes. Uma é a revolta contra as regras que privilegiam os homens. A outra é uma rebeldia contra todos os que não obedecem à regras. No entanto, ambos têm um inimigo em comum, que é a identidade ocidental. Não é que haja uma afinidade teórica entre os dois movimentos, mas simplesmente um pacto prático. O mesmo acontece com os muçulmanos moderados e radicais: não há entre eles afinidade de doutrina, mas existe uma cumplicidade que, se não fosse negada a cada ataque terrorista, seria tomada como um fato.

Entre nós, um personagem parecido ao rei Lear é um ex-funcionário do governo. Sua tarefa, na época no escândalo do Francenildo, foi divulgar o extrato que a Caixa Econômica Federal, sabe Deus em troca de quê, resolveu ceder ao ministro da economia.  É de admirar, portanto, que este mesmo senhor, um fiel servidor do partido que está no poder, um homem que não vê problema em enlamear uma reputação desde que essa seja a ordem que venha de cima, elogie o regime militar brasileiro. Não se trata, porém, de Lear. Não é a ingratidão que o leva a loucura de servir a um projeto de poder e ao mesmo tempo cantar loas a seu oposto. Ele segue a falsa lógica dos fins que justificam os meios. Se a caserna levou a economia do país para frente à custa da democracia, o resultado seria tão bom que faria esquecer qual foi o caminho percorrido até ele. Do mesmo modo, se o que está em jogo é o seu emprego, para conseguir isso ele não hesita em colaborar na difamação de um inocente.

Alguns afirmam, no entanto, que seria impossível determinar qual seja a identidade ocidental, uma vez que um de suas traços é a pluralidade. Há nela lugar para todas as visões de mundo: desde o xiita que adora Alá até o ateu militante, passando por todas as filosofias práticas, segundo as quais os assuntos metafísicos não passariam de uma criancice, de um estágio inicial da razão, de questões cujas respostas são arbitrárias como os caprichos do Joãozinho. A existência de Deus, no entanto, é um ponto incontroverso tanto na grande filosofia como na grande literatura. Os ateus até poderiam afirmar que não há sistemas metafísicos idênticos, mas seria um exagero afirmar que não há um mínimo de consenso, que, por sua vez, é capaz de fundamentar todas as diferenças que existam entre as religiões. No seu canto de cisne, Lear, reconciliado com Cordelia, diz que ela e  ele gastarão o resto da vida espionando os mistérios das coisas.  Isso só é possível se houver uma luz que os ilumine. E não é, como dizem os pigmeus, procurar, numa sala escura, um gato preto que não está lá. A imagem é antes a de um espião, cuja missão não pode ser cumprida se ele brada a sua identidade aos quatro ventos. Mas ele sabe quem é.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Evidências

A biologia evolutiva não goza hoje do mesmo prestígio de alguns anos atrás. Um dos argumentos que lançam contra ela, porém, não merece sequer dois minutos de consideração. É uma dessas reclamações que mais provém de uma indisposição fisiológica do que de uma busca calma e tranquila pela verdade. Um duelo científico é sempre um duelo de teorias sobre fatos de que ninguém discorda. E muitos dos que atacam a evolução hoje simplesmente não propõe nada para substituí-la, e se limitam a afirmar que a evolução nunca foi reproduzida em laboratório. Ela, de fato, não foi nem nunca será simplesmente porque é uma tentativa de entender o mundo como ele é, e não como seria possível forjá-lo mediante a técnica. Contra isso os biólogos militantes esgrimem com sucesso o argumento de que evolução preserva duas evidências: há várias espécies no mundo, e há uma hierarquia entre elas.

O que, porém, torna a teoria particularmente antipática é a definição moderna segundo a qual a evolução não seria nada mais do que uma mudança aleatória do código genético. Além do defeito mais grave dessa definição – nomeadamente, ela não mostra a atualização de uma nota diferencial dentro de um gênero -, ela não é falseável. Em outras palavras, ela sai do campo da ciência e entra no da filosofia, sem antes ter dado conta da finalidade do mundo natural. Uma mudança aleatória é um empreendimento de risco da natureza, como se nela não houvesse uma finalidade, como se as alterações substanciais no ser fossem mera coincidência. Quando Júlio César, às margens do Rubicão, disse que tudo daí por diante seria aleatório, o que ele afirmava é que a guerra civil é uma aventura em que tudo pode acontecer. No entanto, isso não passa de uma frase de efeito, porque é claro que o mais forte, numa guerra civil, sempre esmaga desgraçadamente o mais fraco. Não há aleatoriedade porque mesmo as coincidências são o encontro fortuito entre duas finalidades. E, sem isso, a complexidade maior de uma mosca em relação a uma pedra não seria explicada. Ou seja, uma teoria da evolução que busque abarcar todas as evidências, e não somente as genéticas, ou resolve o problema da finalidade, ou então reconheça que se trata de um ato de fé.

Isso só não ocorre por conta da crença de que para ser científico é necessário ser cético. Isso, alguém douto diria, é uma implicação necessária. No entanto, a ciência nada mais é do que uma tentaviva obstinada de explicar todas aparências sensíveis porque elas são verdadeiras. A ciência está no polo oposto do ceticismo, da indocilidade ao real, da teimosia de se aferrar a teorias furadas ou incompletas que destorcem o fatos e chegam ao absurdo de afirmar que não há diferença específica entre um homem e um macaco. Quem enganou a humanidade nesse ponto foi Platão, e por isso é compreensível a muito alta conta em que as teorias são tidas ainda hoje.

A hierarquia natural, porém, é algo observável não somente em seres humanos, mas também em outros animais. A matéria, à medida que se organiza, torna-se não mais complexa. A contribuição moderna para a biologia é a negação da geração espontânea, isto é, a afirmação de que as mudanças não acontecem por acaso ou por inércia, mas sim que há uma finalidade no processo evolutivo. Uma mosca foi o suficiente para convencer Redi da inanidade de uma opinião comum de seu tempo, mas sociedades inteiras de abelhas e formigas não são o bastante para persuadir os fundamentalistas da evolução.

sábado, 22 de novembro de 2014

A Genialidade do Jumento Alado

Há poucas coisas tão chatas quanto os gênios incompreendidos. A razão, é claro, não é a sua alta sabedoria, mas sim a a repetição quase infinita dos lugares-comuns da genialidade. Um dos prediletos até de jornais populares como a Folha de São Paulo é a legalização. Há mais de dois mil anos os políticos debatem o que é bom e ruim e decidem muitas vezes, à revelia dos interessados, obrigar todos a seguirem a sua opinião. No entanto, por mais que se proibisse a avareza, sempre aparece um Euclião, que, no fim das contas, só desiste do seu amor ao ouro quando a sua indústria fracassa. A modernidade vai no sentido oposto, mas cai exatamente no mesmo erro. As drogas são ruins. No entanto, como proibi-las até agora não foi capaz de extinguir o problema, o melhor seria legalizá-las. Uma lei como essa, no entanto, não é o meio para fazer a revolução. Como dizia o inesquecível filósofo Márcio Diniz, a partir do momento em que um governo abre mão do bom senso, ele desanda para a ditadura.

Em poucos lugares essa bondade inerente ao senso comum foi expressada com tanta simplicidade como na Idade Média. O lugar comum da genialidade, nesse caso, é dizer que foi uma época de trevas. Há, no entanto, dois tipos de trevas: as que servem como uma moldura para um luz tão intensa que se ocupasse todo o quadro todo cegaria, e a da alta genialidade. Na Idade Média, a luz que brilha é acomodada aos olhos humanos. O jumento alado é um dos animais míticos que povoava a imaginação daqueles seres subdesenvolvidos. Ele é, por exemplo, o que salva o duque português quando este se encontra no duro transe de, para fugir de seus inimigos, ter que cruzar uma ponte que, pasmai, está prestes a ser implodida. Não é preciso dizer o que o adorável animal simboliza. O que a Tuba, sim, precisa anunciar é a substituição do fetiche do sobrenatural pelo fetiche do estado. A lei não resolverá o problema!

A solução, eu proponho, é encará-lo com naturalidade. Os brasileiros são um exemplo na arte de lidar com problemas insolúveis. Os nossos índios tinham o hábito duvidoso de comer os seus inimigos. Os políticos portugueses não teriam resolvido o problema se somente propusessem uma lei contra o canibalismo. O núncio real que fosse comunicar o seu conteúdo seria, é claro, devorado pelos índios e o manuscrito seria um tempero. O português, com sua lógica do bom senso, misturou-se ao aborígenes com tanta espontaneidade que lhe fez ver que carne humana não seria a mais adequada para sua dieta. Trocando em miúdos, o problema das drogas não exige a extravagância de dizer que algo péssimo é bom, mas sim a afirmação prosaica de que, se alguém acha que será feliz entorpecendo o seu entendimento, ele é tão subdesenvolvido quanto um camponês da Idade Média. A diferença é que nenhum jumento alado virá em seu socorro.

domingo, 26 de outubro de 2014

A Hierarquia Natural

Todos nós já ouvimos que a ciência é um juiz severo. De fato, é repetido quotidianemente que por exemplo a teoria do desenho inteligente não serve como ciência porque não contém uma tese falseável. Isso, é claro, é falso, pelo menos numa das acepções do conceito, que por sinal é a que eu adoto. O mundo não foi feito por um criador necessariamente, do mesmo modo que um quadro não é necessariamente pintado por um artista. O sorriso da Monalisa não se segue como uma consequência lógica da habilidade de Leonardo da Vinci. Ele o desenhou caprichosamente, porque quis, não porque se viu obrigado a isso por uma necessidade inominável. Os deterministas são místicos que acham que qualquer ação humana é decorrência de possessão de um deus chamado acaso. Com o mundo, porém, a coisa é diferente. Há aí um outro mistério, que, se a teoria do desenho inteligente quiser realmente explicar, dirá simplesmente que se trata de uma mistério claro como a luz do sol. O óbvio é que o sol brilha não por acaso, mas sim porque as plantas e outros animais precisamos de energia. Há uma finalidade, que vai ao encontro de uma necessidade. Essa harmonia, que a teoria evolucionista não explica, é avantagem que alguns bons religiosos jogam no lixo ao colocar Deus num debate que, para Ele, não faz a menor diferença.

A teoria da evolução, cujas teses se multiplicam tanto que é impossível a um biólogo enunciar uma ser atacado pelo biólogo ao lado, conta ainda com alguns defensores zelosos. Um deles é o professor Gerardo Furtado, que afirma que o conceito de ascendência comum não é aceito por uma questão de psicologia. Seria muito difícil para o homem conviver com a ideia de parentesco com o chimpanzé. Eu particularmente não vejo nenhum problema nisso. O que me incomoda porque é falso é a inferência de que não há hierarquia entre dois primos. Quem quer que tenha visto como o mais velho acaba fazendo naturalmente o papel de líder decidindo, por exemplo, que a brincadeira do dia será um tiro ao alvo na goiabeira do quintal percebe a falsidade da opinião. Que um cientista não tenhaexperiência dessas irrelevantes atividades ou que já as tenha esquecido não érazão para se negar o óbvio. A outra inferência precipitada é um um pouco mais complexa.

Os antigos achavam que havia uma scala naturae. O latim é uma língua traiçoeira para os biólogos. Muitos, lendo o termo e querendo entender o conceito, julgam que se trata de um dado de conhecimento próprio. O homem, vendo-se com o poder sobre as demais criaturas, teria imaginado uma pirâmide em que ele mesmo teria se colocado no topo. O ponto, porém, é que essa ideia não surge num contexto humanista. Os que a defenderam eram biólogos, e é na observação do reino animal que sua compreensão acontece. Mas o latim, como eu dizia, é uma língua que pode confundir os que lhe dedicam somente o tempo que sobra das suas atividades científicas. O genitivo naturae não significa apenas uma posse, como se a hierarquia fosse uma propriedade que mãe natureza adquiriu no supermercado. Ele significa antes de mais nada a origem sensível da organização. A ideia de um mundo que vai se estruturandodo mais elementar para o mais complexo está patente, dentre outros lugares, na sociedade das formigas, em que a maior tem uma ascendência natural sobre a menor. 

A biologia evolutiva atual, no entanto, não tem o instrumental filosófico necessário à compreensão de um fato que entra pelos sentidos. Tudo foi por água a baixo na refutação absoluta dodesenho inteligente. Do modo como ele é postulado pelos protestantes, de fato, ele não é falseável, porque foge completamente ao senso comum, que é um pré-requisito da opinião. No entanto, a causa final é um conceito tão natural, que não pode ser deixado de lado numa explicação sobre variedade dos animais. O dilúvio, no entanto, não se contentou com submergir esse conceito, mas também acabou por apagar a linha que divide as humanidades da biologia. A ideia de hierarquia natural não tem o homem no topo da pirâmide, a não ser, é claro, que ele seja um asno.

Hierarquia das Formigas

sábado, 11 de outubro de 2014

A Tolerância de Olhos Abertos

A justiça costuma ser simbolizada como uma mulher com os olhos vendados. Seria uma falsidade afirmar que a justiça brasileira, fazendo jus à simbologia, tem tomado as suas decisões no escuro. No entanto, é fato que quando alguém lá dentro resolve abrir os olhos, como fez Joaquim Barbosa, e dizer claramente qual é a sua opinião, muitos reagem como se um ídolo sagrado tivesse sido profanado. É como se estátua tivesse levado a mão ao rosto, tirado a venda e piscado aos adoradores da cegueira. Eles gritaram espavoridos para que ninguém mais ouvisse qual seria a sentença. Mas o assunto de hoje não é propriamente a justiça brasileira, mas uma ideia perniciosa que vem voando desde o Velho Mundo e aterrisa em terras tupiniquins. Os ingleses parecem querer que não só a velha justiça, mas também a nova tolerância seja cega.
A pergunta a que a The Economist responde negativamente essa semana é: as escolas religiosas podem adotar como requisito para contratação de um professor que ele confesse a mesma fé da instituição? Ora, não há nada de estranho nisso, visto que qualquer empresa tem sua filosofia, e qualquer um que não concorde com ela cedo ou tarde terá problemas para se manter no emprego. A diferença é que nos casos onde a confissão religiosa é testada de antemão, a situação é mais clara. Não há instituição digna do nome que não tenha um modo próprio de ver a vida. Se ela é capaz de enunciá-lo em tão poucas palavras quanto as que contém, por exemplo, o Símbolo dos Apóstolos, melhor ainda. Isso  não é intolerância, como alguns prontos a repetirem clichês dizem. É exatamente o oposto. É simplesmente tolerar que os pais possam dar a seus filhos a educação que bem entenderem. Os contrários a isso são sempre pessoas práticas que não percebem a importância de uma filosofia explícita de vida. Para eles, como tanto faz se alguém tem esta ou aquela teoria, o critério parece discriminatório no sentido ruim da palavra. Porque, é claro, discriminação tem dois significados. Um é traçar uma linha que divida os homens entre bons e maus, aptos e inaptos, dignos e indignos com base em algo que não tem a nada a ver com bondade, aptidão ou dignidade, por exemplo, a côr da pele. O que, porém, uma escola, digamos, católica, faz ao exigir de seus professores uma profissão de fé e uma conduta minimamente compatível com essa fé é distinguir ideias. E essa discriminação é muito boa.
É aliás um requisito para que uma sociedade seja plural. Porém, se as ideias não podem ser transmitidas aos outros no estado o mais puro possível, insisitir que a sociedade precisa de pluralidade não passa de uma vã repetição. O que os partidários da tolerância cega querem dizer é isso: As crianças não precisam de uma filosofia de vida. A missão da escola é simplesmente torná-las aptas a ingressar no mercado de trabalho e  contribuir assim para o bem comum. Como o trabalho pode ser desempenhado sem que alguém tenha uma teoria sobre qual é seu significado para si, para os outros e para Deus (que, diz o pedante, talvez nem exista), a exigiência de confissão religiosa por parte dos professores é um arbítrio da direção da escola. Essa é uma teoria perfeitamente aceitável, desde que a contrária a ela também o seja.
Há, ainda, dentre os partidários da tolerância cega os que não instrumentalizam a educação vendo-a como uma mera preparação para o trabalho. Eles julgam, e estão certos, que a escola é um bem em si. O que esses querem dizer ao falar de discrinimação é isso: A função do colégio é formar pessoas eclarecidas. Alguém será tão mais esclarecido quanto for maior a diversidade de opiniões com que tenha contato. Logo, a escola que tenha os professores mais diferentes poderá proporcionar a melhor educação para seus filhos. Essa teoria é verdadeiramente teórica. Mas não é possível impingi-la aos pais das crianças, que podem muito bem achar interessante que seus filhos, antes de entrar em contato com mil filosofias diferentes, tenham um critério seguro para julgá-las. O pai que quer ensinar ao filho o seu modo de ver a vida é como o pai de Hamlet, que lhe dá um sentido para a existência. O  genitor que, ao invés disso, quer colocar o filho em contato com o maior número possível de opiniões, termina fazendo dele um Laertes, que não aprendeu de seu pai senão a como se portar  no mundo como alguém bem educado no sentido ruim da palavra, isto é, como alguém que é inofensivo por ser insosso.  No final, o único pensamento do infeliz será que todas as filosofias estão certas. Mas, se é assim, então a afirmação que só uma filosofia de vida é certa também é verdadeira. E o fato é que é assim mesmo. O próprio Cícero, que era um liberal avant-la-lettre, percebeu que a abertura de mente pode até ser útil como método, mas não é coerente como filosofia. Usar a cabeça é discriminar o que é verdadeiro do que é falso de uma vez por todas.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Fatos

Os leitores da Folha foram agraciados com um debate interessante entre JP Coutinho e Hélio Schwartzman. O primeiro afirma que é irresponsável que um cientista se pronuncie sobre Deus. O segundo diz que irresponsável é acreditar em Deus. Ser árbitro oficioso de discussões alheias é sempre uma tarefa ingrata, e mais ainda quando se trata de jornalistas que desempenham seu ofício com inegável envergadura filosófica. No entanto, nada impede que um pigmeu assista a um embate de gigantes e declare vencedor aquele que terminou de pé. E, no caso, não há dúvida que o vencedor é João Pereira Coutinho. A opinião de Schawtzman diz simplesmente que não se pode provar cientificamente que Deus exista. Isso, porém, só acontece por conta do preconceito científico contra os milagres, que são fatos.

O problema é que desde Francis Bacon a ideia de fato ficou reduzida àquilo que é produzido pelo homem. Se, pois, a ciência só se preocupasse em dar explicações de construções humanas, qualquer fenômeno que por definição não pode ser realizado pelo homem ficaria de fora. Em outras palavras, a ciência não poderia se pronunciar sobre milagres porque se trata de algo alheio ao seu âmbito de estudo. Mas o fato é que a ciência nada mais é que uma técnica de produzir utilidades, o que é sem dúvida muito bom, mas não é o que pode dar uma resposta à dúvida sobre a existência de Deus. O caminho para isso são as cinco vias de São Tomás de Aquino. Essa no entanto parte do pressuposto filosófico de que sequência causal não é um círculo, mas sim uma pedaço de reta, ou seja, que o mundo começa e acaba.  Os doutos que discutam sobre o assunto e aquilatem o valor da premissa, mas o ponto é que de fato não há nada no mundo seja eterno à exceção da cidade eterna.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O Fato Invertido

Nessa vida, não há muitos estudos necessários. Para se viver bem, basta ler o Hamlet de Shakespeare, o Memorial de Aires de Machado de Assis, a Bíblia e os manuais dos eletrodomésticos. O resto é mais ou menos conversa fiada. No entanto, os fios dessas conversas, em mãos habilidosas, podem vir a formar uma tapeçaria medieval. E é nesse sentido que toda discussão acadêmica sobre a consciência é pertinente. Os doutos nos fazem perceber que nesse como em muitos outros assuntos o que há de novo no mundo é o desenvolvimento de doutrinas caquéticas como a da desobediência civil.

Não há nada tão velho quanto a oposição à lei. O desenrolar moderno desse fio, porém, está na afirmação de que o crime compensa, desde que bem planejado.  A consciência não faria juízos, mas tão somente deliberaria sobre o meios necessários à realização do bem.A tese desses apologistas da subversão é que seria impossível julgar os atos, mas seria bom julgar a própria consciência.  O otimismo desses modernos é sem dúvida edificante. Eles partem do princípio de que todo homem deseja ir a Roma, e portanto, se não chega lá, o problema é da estrada que sempre levou a Brundísio. A opinião de que a via correta para se chegar a Roma é a Ápia seria simplesmente relativa.  E, num certo sentido, é de fato a relação o único que importa. O problema é a ingenuidade de se considerar que alguma relação direta com Deus é possível depois do pecado original. Essa teoria, assim, nada mais é que o pelagianismo com o grano salis da liberdade.

Não se trata, todavia, de uma doutrina sem fundamento. A consciência, de fato, não é capaz de julgar julgar os atos de ninguém, e o primeiro democrata do mundo disse que não julgava nem os próprios atos.  A democracia é baseada na tolerância. Se alguém vota, digamos, na Dilma Roussef, julgando que ela seria a melhor administradora para o Brasil que a Marina, a opinião deste alguém pode estar equivocada. Mas isso jamais justificaria que ele fosse impedido de participar das decisões sobre o rumo do país.  O juízo, neste mundo ou no outro, nunca é sobre a consciência própria ou alheia. Isso seria ou uma doença mental ou uma ditadura.

Niguém nega, todavia, que ele possa ser mais ou menos bem baseado em fatos.  E a lei não é outra coisa que um fato invertido. A proibição do homicídio somente pode aparecer depois que o José foi morto. A diferença entre o que aconteceu e a prescrição é uma mudança de sentido. Antes, a morte foi a realidade.  Agora, a vida é a ideia.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Saída de Cena

Um avião que cai e uma doença são ambos argumentos definitivos contra todos aqueles julgam que o homem deveria viver para sempre. Como se a indesejada das gentes fosse realmente tão má, eles se comportam como loucos ao defenderem que os avanços da medicina são a solução para a humanidade. O homem é, por natureza, frágil e exatamente aí reside a sua ascedência sobre todos os animais. Os leões, que são fortes, não precisam se reunir em sociedade para sobreviver. Os ursos, revestidos de pelos, não necessitam de fabricar casacos para se proteger ao frio. As formigas, que nunca se cansam, não têm os seus hotéis. Mas o homem, que não tem as garras do leão, nem os pelos do urso nem a infatigabilidade das formigas, usa sua razão para realizar de maneira perfeita as funções dos outros animais. Se o homem fosse eterno, ele seria um bruto.

sábado, 9 de agosto de 2014

Sistema Cantareira

Uns dizem que o volume disponível no sistema Cantareira é de 400 milhões de litros d`água, enquanto outros afirmam que seriam 511 milhões. Os políticos, é claro, buscam tranquilizar a população divulgando o maior número possível. Os cientistas, entretanto, embora também desejem que ninugém se preocupe com a estiagem, buscam fazer com que a reserva técnica seja respeitada. Esse é o nó da controvérsia. Se o sistema fica abaixo de um nível mínimo, as bombas não teriam como operar de modo que, ainda que houvesse água, ela não chegaria até as torneiras de São Paulo. Se, no entanto, a situação chegar ao desespero, nada impediria que todos fôssem com seus baldes retirar a água de que necessitam diretamente da fonte. Portanto, a preocupação dos cientistas não é tanto com o sistema, mas sim com a comodidade de se ter água encanada.  Esse é o problema com a ciência. Em vez de deixarem claros seus pressupostos, eles simplesmente aderem cegamente a idea de o mundo é necessariamente tão agradável quanto um passeio pelo parque. Eles se esquecem do pecado original do sistema Cantareira, que é o de ser construído para alimentar antes de mais nada a população urbana.  

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Liberdade

Um amigo meu, rapaz muito simples, afirma que Plínio de Arruda não era conservador. Ele foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e, num de seus últimos debates no partido, adotou uma posição macabra. Plínio não seria um conservador porque seria um assassino. É neste ponto, porém, que simplicidade seixa de ser uma virtude para se transformar em algo parecido com espírito de porco. Meu amigo é convervador, embora ele não o confesse abertamente.  E para ele qualquer um que defenda a liberdade como último critério é um progressista. No entanto, a liberdade é um dos pliares não do PT, mas também do PSDB. Se todos os que a defendessem, José Serra, que busca libertar os fumantes do que ele acha um vício e é somente um hábito de sociabilidade, seria um progressista. Ele, porém, é tão conservador quanto o senhor Plínio de Arruda. Ambos querem que os brasileiros sejam livres. O problema é ambos acham que a liberdade é como que ideia platônica. Ele existiria tão somente porque o homem corajoso o suficiente para exercê-la seria o dono das próprias decisões. Ele existiria tão somente porque cada decisão traz consigo inexoravelmente uma responsabilidade. No entanto, a liberdade não é isso.


Outro amigo, que é tão amigo da liberdade quanto da simplicidade, define essa virtude como a capicade de escolher bem. E ele está mais próximo da verdade. Mas mais uma vez uma virtude acaba puxando a outra para baixo. Liberdade não é o poder que todos devemos ao capitalismo de entrar num supermercado e, entre as inúmeras opções de sabonetes, comprar a quem mais lhe agrada. Liberdade é renúncia. E na medida em que alguém, como aquele português que sacrificou a própria vida em nome da igualdade, renuncia a um bem para alcançar outro, ele é livre. Liberdade é a decisão pelo Bem que é único. Plíno Arruda, pelo que consta, plasmou a sua vida neste sentido. Não há outra explicação para o seu sucesso com a nova geração. Um esquerdista é, por definição, aquele que renunciou a tudo menos a política, e se torna, por isso, tão chato que só ficam próximos dele pessoas adultas o suficiente para sempre terem uma segunda intenção. Se ele, por um momento, achou que a reforma agrária era um assunto menos importante que a disposição do próprio corpo, foi por um equívoco em que muitos bons dominicanos já caíram.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Plínio de Arruda

Dezenas de jovens acorreram ao enterro de Plínio de Oliveira. Alguns joranlistas ficaram surpresos como um homem tão velho pudesse ter a companhia de gente tão nova. A explicação, no entanto, já foi dada. Plínio era um radical. Ele, porém, não era um desses revolucionários que tem um espécie de paralisia que os impede de olhar para trás e encontrar para sua revolução um princípio venerável nesses dois mil anos de história. Ele olhava para tràs, e talvez essa tenha sido pradoxalmente a causa de seu suicídio prático, não obstante todo o sucesso de sua filosofia.
É que o melhor  da antiguidade, pelo menos em termos morais, foi formulado por seita de pensadores que eram falsos otimistas.  Eles achavam que, tendo as ideias corretas, o mundo se submeteria a seus desígnios. No entanto, qualquer um que já tenha considerado a história do Brasil perbece que seria melhor, por exemplo, se os índios brasileiros tivessem feito as pazes entre si antes de os portugueses terem chegado por aqui. Na história, nem sempre o melhor curso é o certo. E também a vitória de um movimento numa época não significa que ele encontrará as portas do triunfo abertas para todo sempre. 
Plínio de Oliveira foi um homem bom, mas bom demais para o seu tempo.  Ele tinha uma bondade que se satisfaz com a imaginação de um país melhor. Isso é muito, mas uma guerra não se vence somente com ideias. E quando elas somente atraem algumas dezenas de jovens, é sinal que a sua formulação não é popular o bastante.  

domingo, 20 de julho de 2014

Pan-eslavismo


Um avião de passageiros civis é explodido por separatistas russos na Ucrânia, e tudo o que os jornais dizem são os fatos. A primeira hipótese é pura propaganda.  O governo ucraniânio não tem controle nenhum sobre Donetsk, de onde partiu o míssil. A ideia de que seriam os próprios russos é também conversa fiada. Eles são malucos, sem dúvida, mas usam de sua loucura com método e não ganhariam nada matando inocentes.  O ataque foi um erro militar, cuja origem é o Kremlin. Se um pai dá uma arma a uma criança furiosa, não é imprevisível que ela seja disparada por acidente.  Mas, no mesmo sentido, ninugém reponsabiliza a Taurus pelas mortes dos ladrões que invadem à noite as casas. O ponto é que, embora nada possa ser alegado contra os fatos, uma opinião é absolutamente necessária nessas horas. Que regime os produziu? Há algo nesse regime que seja admirado e copiado em outras partes do mundo?
Para a primeira pergunta, a resposta é simples. A Rússia ainda não acordou do sonho de um pan-eslavismo que não respeita as soberanias nacionais de seus vizinhos. Vladmidir Putin não é somente um presidente de uma república. Ele é o chefe de um estado com pretensões imperialistas que não descansa enquanto não subjuga qualquer um que ouse se levantar contra seus planos.  E o pior, quando algo dá errado, recorre a uma propaganda mequetrefe para explicar o erro. A segunda pergunta é um mergulho na nossa história, que acabaria por trazer à tona nomes de pessoas comprometidas com uma ditadura de esquerda que vivem de esbrajear contra uma inexistente de direita. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

A Voz das Ruas

O Brasil foi desclassificado, e a tristeza nacional se reveste de tons poéticos. Um zagueiro brasileiro dizia que seu sonho era dar alegria ao povo brasileiro. Não há sonho que resista à realidade da organização alemã. Um panzer passou por cima da seleção, mas já não há mais o que fazer. A notícia da semana, porém, é a invasão do planalto pelos índios que foram para seu Congresso de Saúde. Estando já em Brasília, resolveram visitar os deputados para pedir a demarcação das suas terras. Os representantes da nação, é claro, receberam-nos muito bem.  Visita surpresa, como dizia minha vó,  ou é coisa muito boa ou muito ruim. No caso em questão, é óbvio que foi boa. Sem ela, os senadores teriam que comer a pizza sozinhos, o que prejudicaria o peso ideal. Os índios, porém, é que não fazem muito bem em participar da dieta política.  Ou aceitam por completo a sua identidade, o que significaria que não haveria dos países, o deles e o do homem branco, ou simplesmente façam um país próprio, a Indolândia. O que é não é possível é recorrer aos brancos quando a coisa fica preta, mas exigir território próprio quando convém.


O problema com a politicagem é exatamente isso: ficar em cima do muro é só fingir independência. Essa seria o único critério. Desde que alguém se mantenha independente, ele pode opinar de maneira contraditória, dizer-se a favor dos revolucionários neste ponto, mas não naquele, xingar e e louvar a mesma pessoa, enfim, todas as opções de vida lhe estão abertas, desde que ele não escolha definitivamente nenhuma. Isso não é liberdade, nem muito menos independência. É somente a leveza da palha, que o vento leva aonde quer.  O poeta que, ao final da derrota para a Alemanha, dizia que seu único sonho era ver um sorriso no rosto dos brasileiros pode não entender nada de futebol. Mas tem faro certeiro da razão dos compromissos. 


segunda-feira, 30 de junho de 2014

Ditadura da Felicidade

O senador Aloyso Nunes foi escolhido como o vice de Aécio Neves. Em maio, ele se envolveu numa discussão com o jornalista Rodrigo Pilha, que insinuou que ele seria um ladrão. Quem não deve não teme. Seria demais, no entanto, afirmar que um sentimento tão vil achara acolhida no peito do senador. Ele enfrentou o jornalista.  Quem correu foi o curioso, que acabou sendo preso no ônibus pela polícia do Congresso. Aloyso Nunes não é homem de aceitar suspeitas infudadas.

O ponto, porém, é que há questões nas quais o único possível é uma suspeita. Uma delas foi abardodada recentemente pelo meu amigo Leonardo Sakamoto, que se revoltou contra a ditadura da felicidade que resolveu pôr as garras de fora nas últimas semanas.  Qualquer pessoa que convide um amigo para se divertir espera, é óbvio, que ele aceite. Mas o óbvio não é suficiente para nós, os revoltados. O óbvio nada mais é que o bom senso. E só um lunático acharia que o mundo é côr-de-rosa.

Mas, por outro lado, não há suspeita mais geral do que aquela segunda a qual felicidade é não só possível, mas obrigatória. Quando Antônio, cuja carne é a garantia de Shylock, está cabisbaixo, a única coisa infudada é seu motivo para estar triste. Nem ele mesmo sabe dar a razão da sua melancolia. Quando lhe perguntaram por que seu olho mareja, ele não responde. Este é o mesmo silêncio que cala na alma do meu amigo quando alguém o convida para uma festa.  Antonio não sabe por que está triste. Meu amigo ignora por quê estaria alegre. A suspeita, todavia, é de o pessismo não é somente um tédio. É, antes de mais nada, a razão pela qual todos se revoltam contra Antônio e meu amigo. A gente não admite que alguém fique morocoxo ao seu lado por que sua alegria é contagiante, e, se não o fosse, seria falsa.

Porém,  todo esse dilema se resolve se partimos do começo. O problema é que a modernidade começa do fim.  Leonardo Sakamoto, com uma ingenuidade que sem dúvida é uma  virtude, afirma que não precisamos ser salvos. Ora, quando um operário morre na construção do metrô que liga Congonhas ao Morumbi, ninguém duvida que isso é mal e seria muitor melhor se sua vida tivesse sido preservada. O que, porém, ninguém disse, é que os habitantes daquele nobre bairro poderiam ir de táxi ou de ônibus até o aeroporto. O desejo de fazer coisas grandes, o desejo de realizar atos memoráveis, o desejo de deixar seu nome inscrito na história é o que leva um engenheiro e um político se reunirem para furar na terra o caminho de um trem. Se não fosse por isso, porém, a suspeita da felicidade obrigatória seria um certeza.

sábado, 28 de junho de 2014

Campanha Eleitoral

Existem poucas coisas tão interessantes nos jornais quanto às eleições. O candidato mais respeitável é o pernambucano Eduardo Campos. Seu projeo de conciliação é o melhor remédio para sanar as divisões que existem no Brasil. Há, no entanto, um ponto em que ele e os demais não se manifestam em alto e bom som. Esse ponto, todavia, é crucial para o destino dos brasileiros. Trata-se de saber se, uma vez eleito, sua conciliação se estenderá ao conflito entre os teóricos de um governo marxista e os teóricos de um governo metafísico. A bancada evangélica e a bancada do PT são as mais organizadas do Cogresso, e o presidente que for eleito no próximo outubro terá mais trabalho com elas do que com qualquer crítica pragmática que a mídia venha a fazer.

Não há muitas soluções possíveis. As duas posições são diametralmente opostas. Em questões como a da vida, o melhor seria se espelhar no pragmatismo norte-americano da fundação Bill Gates. Os marxistas, ao fim e ao cabo, não passam de pessoas práticas perdidas em meio a um debate cujo passado eles se negam a compreender. Eles se fecham na sua própria doutrina e acusam os outros de sectarismo. Mas o ponto fundamental é que é impossível ter uma certeza exata sobre  quando começa a vida.  Ela, claramente, é anterior ao nascimento, pois nada do que é poderia vir do que não é. Deixada, porém, a metafísica de lado, o único certo é a incerteza. E diante da incerteza sobre algo tão fundamental, a melhor atitude que os pragmáticos podem assumir é a do bom senso. A vida é algo intocável, e qualquer medida que possa colocá-la em riso vai contra a razão. Se isso ficasse calro na campanha de Eduardo Campos, ele seria sem dúvida um candidatos imbatível.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Revolução II

José Nêumane, que não tem papas na língua, mostra que  marxismo é como um Saturno que come os próprios filhos. A revolução começa por despertar a consciência histórica e termina por um ressentimento contra tudo o que é verdadeiramente popular, no qual,  é claro, não se incluem as leis, seja de que tipo for. Do contrário, a revolução seria simplesmente uma negociata com o poder, quando, de fato, é a crítica como meio para devolver ao mundo a política desinteressada. Se os políticos fossem só políticos, a revolução seria somente a tradição. No entanto, não é isso o que vem acontecendo.

As vaias que Dilma recebeu no Itaquerão não foram somente da elite branca. A causa da hostilização da presidente foi a corrupção de que o governo é o protagonista impenitente. Mas nunca antes nesse país, houve um partido que fosse tão popular como o PT: ele consegue cativar os sentimentais fazendo-se de vítima solitária da mídia e da oposição. Ademais, a instauração do caos, que tem nos quadros dele os defensores de maior bom senso, não carece de apoio institucional mesmo fora do partido.

Na última quinta, sobre a cabeça dos manifestantes por melhores salários dos metroviários, tremulava o estandarte da USP. Revoltados também se reuniram às 15h de quinta-feira, dia de Corpus Christi, na Praça do Ciclista para comemorar um ano da redução do preço do metrô.  Marcelo Hotimsky, um dos manifestantes, afirmou que não procuravam confusão. No entanto, depois de bloquearem o cruzamento da Oscar Freire com a Rebouças, eles foram até a Marginal Pinheiros depredando, no caminho, duas agências bancárias, e jogando as bandeiras do Brasil e de São Paulo no chão.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Adubo

Um dos problemas da modernidade é ver nos laços de sangue doenças genéticas.  Mas eles são também o único modo de a sociedade se opor à tirania do Estado. Na Itália, porém, o mundo está de cabeça para baixo. O governo tem uma boa causa contra a família.  Mas essa é a própria exceção que prova a regra. A política estatal não é boa porque vai contra a família, mas sim porque família em questão, Ndrangheta, está de tal modo virada para de ponta cabeça que praticamente clama para ser extirpada.  Não, é porém, somente pela força que bem trinufa.

D. Giacomo Piazza é um padre na Calábria. Fundou um projeto para ajudar aleijados a conseguir empregos. Quando chegou à cidade, resusando-se a pagar o dízimo à organização criminosa, a máfia furou os pneus de seu carro. Ele o tomou como uma sinal de contradição que o confirmava no seu caminho. Não faz muito, um imóvel foi confiscado da Ndrangheta. Ninugém ousava arrematá-lo em leilão.  D. Giacomo, para quem ser padre é incompatível com ser covarde, toma o prédio, que antes funcionava um ponto de encontro de jogadores e dorgados, para seu projeto comos deficientes. 

O bem triunfa quando não enfrenta diretamente o mal. Não há como medir forças com o crime organizado. O caminho é tomar o que eles deixam para trás e fazer desse esterco adubo para a terra onde florescerá a justiça.

sábado, 21 de junho de 2014

Os Náufragos do Igapó

Mayne Reid era filho de um pastor presbiteriano que queria a mesma profissão para o filho. Os jovens, no entanto, tem seus próprios sonhos e do pequeno Reyd era ser um aventureiro. Hoje essa profissão pode parecer um tanto estranha, mas numa época em que guerras pipocavam com uma frequência nada desprezível, esse métier se encontrava entre a lista das vocações possíveis. O aventureiro se alistava como voluntário no exército e ia lutar em guerras com a do Estados Unidos contra o México ou a da Revolução da Bavária, como fez Reid. Nas horas vagas, ele também exerceu o jornalismo.

Os Náugrafos do Igapó é um livro de aventuras.  Conta a história dos viajantes de uma galatéia que se perdem numa floresta inundada entre as curvas do Solimões. A galatéia se perde, e os náugragos, depois de perambularem nadando ou pulando de árvore em árvore pelo Igapó à maneira de macacos, encontram seu meio de transporte num tronco de monguba. O autor não vê problema algum em parar a narração para descrever os animais e as plantas da Amazônia, e eis aí um ponto alto do livro. E outro é a própria história, que é de fato eletrizante. Mayne sabel levar a tensão ao limite sem que jamais a tragédia se consume, como no episódio em que todos estão prestes a ser devorados por uma anacandaia.

É certamente admirável a precisão da narrativa. Quando, ao fim do livro, dois personagens que tinham tudo para serem inimigos fazem as pazes e entabulam um diálogo em que disputam quem é capaz de contar a história mais fantasiosa, o vencedor não é nenhum dos dois. É, antes, o próprio autor, que pinta um quadro de peripécias extremamente verossímil. E não teria feito tal prodígio de ficção se não falasse o tempo todo de um tema com o qual, como um protestante,  ele tinha bastante intimidade: a autoridade.

Os persnagens não teriam ficado perdidos no igapó se não fosse a timidez de um irlandês ante o seu superior. Quando o barco se desviava, ele não o avisou a ninguém. Depois do naufrágio, Ralph, que era o reponsável pela viagem como que cede o mando a um índio, que conhecia aquelas paragens como ninugém mais. Ele teria mais conhecimento e, portanto, seria o chefe ideal. Ralph permancesse, no entanto, como o guia espiritual dos aventureiros, exortando-os a dar graças a Deus quando algo corre bem e pedir ajuda do alto quando correm mal. Ora, era exatamente isso que aconteceia com os que se separavam do anglicanismo. Aceitavam o trono inglês como uma autoridade temporal, necessária por pela sua experiência de governo, mas se submetiam ao mesmo tempo a um primado exclusivamente religioso.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Na Calada da Noite

O Brasil oficial acha que o trabalho é mais estimulante se houver regulamentação. As leis são, de fato, um prevenção contra a deslealdade competitiva. Mas não há dúvida de que formalidade é estimulante somente para o governo, que assim financia seus programas assistencialistas, que por sua vez minam a autonomia do Brasil profundo, e para os advogados, que tornam esse processo lento.  A competição não é um fim em si mesma. Colocá-la como a última palavra é inverter a ordem do trabalho.  O seu João não faz pãos para vencer o seu Joaquim no mercado. Ambos panificam para alimentar os outros, isto é,  a sociedade.

Parece que quem não se importou muito nem com a sociedade nem com os outros foram os metroviários que entraram de greve. É um grupo pequeno que recebeu apoio de outros rebeldes cuja única causa atualmente é uma incógnita até para eles. Ninguém gosta desses, nem o governo nem a oposição. São detestados por gregos e baianos. E, no entanto, são os únicos que tem razão, ainda que incoscientemente. Se a Copa serve para alguma coisa, não é para melhorar a imagem do Brasil lá fora. Machado de Assis já fez isso sozinho. Se serve para algo, é para desviar a atenção de atos do governo que não seriam aprovados de outro modo. A calada da noite é o ambiente propício para os ladrões. Mas, nestes dias, um jogo de futebol poderá lhe fazer as vezes.

Por exemplo, não faz muito, o governo aumentou a carga tributária das atividades de risco. As empresas que operam na área de segurança, pela sua própria natureza, colocam na berlinda a saúde de seus funcionários, de modo que qualquer medida que busque eliminar a chance de um sinistro está fadada ao fracasso. A eliminação completa do risco de violência é tão possível quanto a transformação da USP numa monocultura de soja, e menos lucrativa. A consequência disso é clara. O monópolio da violência estatal levaria o Brasil rumo a ditadura.

Fomentar a segurança passaria por aliviar a carga tributárias dessas empresas. Isso já é possível. Basta que aqueles que tenham a iniciativa de prover a segurança da sociedade não regularizem seus negócios. É verdade, a informalidade acaba por gerar mais riscos. Mas viver é perigoso.  Seria mais producente se o governo tratasse essas sociedades como meras associações de lazer. Seus integrantes se reuniriam para treinar tiro e ouvir palestras sobre táticas militares e, depois,  fariam, como trabalhadores autômanos, a segurança do quarteirão.

Há riscos, porém, que não vale a pena assumir. Joseph Blatter reclamou da taxa de latrocínios no país, um crime particularmente estúpido. E esse clamor é repetido todos os dias. Quando Figueiredo se negou a construir estádios porque havia outras prioridades, era um dos últimos últimos estertores da ditadura, que pode ser definida como a surdez aos caprichos do povo. E um desses calha de ser a sede por justiça. O que o governo faz ao promover o aborto na rede pública é algo parecido ao crime deplorado pelo senhor Blatter. O bandido mata para roubar. O governo rouba para matar. O Brasil já manifestou sua intolerância à violência ao prender ao poste alguns mequetrefes e linchar uma mulher suspeita de magia negra. Mas não deixou claro, ainda, o que fará com os que assassinam seus filhos. O voto dele, porém, eles certamente não terão.

sábado, 14 de junho de 2014

O mundo dá voltas

É preciso ser um anjo para reconhecer outro. A esquerda tem ideais lindos, embora sua prática, que é levada a cabo por homens – nunca é demais lembrá-lo -, seja desastrosa. Ele inebria a juventude com sonhos de justiça social, embora a sociedade que ela fomente de fato seja um pesadelo. E, não obstante a realidade a desaconselhar terríficamente, ela continua a fazer o mundo dançar ao som de sua música. A Europa optou pela direita nas urnas. Isso siginifca que lá já não há anjos, ou que eles, sabe Deus por quê, viraram demônios.  O que é certo, porém, é que os sonhos não morrem jamais. 

E também que só quem não acorda são os defuntos.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Luta de Classes no Brasil

Um homem togado, calmamente, queria seguir com seu trabalho. O advogado teimava em ter logo o julgamento do seu caso. Tomava desesperamente o microfone para exigir o direito de seu cliente. Vêm a pedrada: o ministro faz tirarem-no à força de sessão. É um motivo de gozo para a vítima. Cada injúria realizada por Barbosa seria um triunfo para advogado de Genoíno.  A inversão dos papéis de vítima e carrasco é evidente na declaração com que o causídico brindou os jornalistas que o acompanharam ao ser expulso. O que não é tão clara é a afirmação do respeitável ministro de que a república não pertence aos petitas.

Bom, se os petistas assumiram o poder democraticamente, eles deteriam a república. Ademais, não há hoje partido que seja tão bem equipado retoricamente quanto o governista. A sua propaganda é a melhor, e, se a mídia é de fato um quarto poder, a repúpbica é deles.  Do mesmo modo, é inegável que a influência do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva é avassaladora. Ele é petista. Logo, a república é deles.  Tem o poder aquele grupo que articula melhor sua agenda com os formadores de opinião. Os universitários soltam pelos poros a doutrina marxista. Logo, a república é deles.

E como pode então senhor ministro afirmar que a república não é deles? Pela razão óbvia de que não existem eles e nós. O marxismo só vingou no Brasil porque o homem cordial que habita estas plagas não tem limites para seu acolhimento. Os primeiros a fazerem a divisão entre nós e eles, os primeiros a categorizar a sociedade em classes, foram de fato o partido que hoje governa o país. Isso, porém, é tão falso quanto a inversão do advogado. Se a república tem algum dono – o que é altamente duvidoso -, este é o povo brasileiro, que admitiu a luta de classes somente para pacificá-la.

Camponeses Brigando de Browuer


Advertem-nos os entendidos, porém, que o povo é distinto do vulgo. O vulgo é iletrado,  indelicado e bruto. O povo dos idealistas é iluminado, deixa para trás de si as sombras da supertição e assoma, pimpão, à proa do navio da história. Esse povo, todavia, não forma a democracia. Essa não é, felizmente, para homens que tem a delicadeza como último critério. O tempo todo acontecem episódios como a expulsão do advogado. Os analistas que discutam quem estava certo. Indubitavelmente, porém, o embate de que a cena no STF é símbolo do que sempre será um dos traços essencias da democracia.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O Drama Judaico


Não faz muito o professor Roberto Romano desafiava seu leitores a se debruçarem sobre a encíclica Cum nimis Absurdum. Mas, ele advertia, o documento não seria facilmente digerido por conta de seu conteúdo antisemita. Alguns fatos da época, no entanto, não podem ser ignorados por quem quer que se aventure a interpretá-lo. Do contrário, desafio se transfomaria, e não parece ser este o intuito do professor, numa provocação . Não seria uma tentativa de compreender o drama dos personagens históricos envolvidos, mas tão somente um julgamento anacrônico  sob a capa do espírito crítico.

Os judeus já viviam em guetos. Estes se tornavam, à medida em que aumentavam, lugares inóspitos para os mais avesssos ao debate. Discutia-se se a língua utilizada nas cerimônias religiosas seria o vernáculo ou o hebraico, se as músicas seriam cantadas ao som de instrumentos ou à capela, se para cada sílaba poderia haver mais de uma nota. Isso não, significa, porém, que o judaísmo estivesse enfraquecido pela casuística. O melhor judaísmo sempre foi o casuísta. Era antes o contrário: a busca pelo aperfeiçoamento de sua cultura pressupõe uma base comum sólida, que, no seu caso, é a lei, ou melhor, uma miríade de leis.

O gueto, portanto, era interessante para os judeus no século XVI do mesmo modo que as reservas são convenientes para os indígenas no XXI. Sem ele, a ortodoxia judaica corria o risco de ser irremediavelmente corrompida. Não é qualquer religião que consegue se preservar intacta depois de séculos de contato com o mundo. A árvore do judaísmo conservador precisava de um terra própria onde brotar e cresccer. O gueto instituído pela bula, portanto, não tinha a conotação que veio adquirir no século XX. Ele não era ante-sala da morte. Para os judeus, ele era a garantia da sobrevivência.

Malta foi um dos últimos redutos de escravidão na Europa. Os traficantes que lá obtinham o seu ganha-pão buscavam judeus até mesmo nos navios de cristãos.  Com efeito, se eles fossem pegos em navios otomanos, era claro que se tratava de inimigos. Mas por que prendê-los se estivessem juntos com cristãos? Eles eram presos por uma razão de senso comum, contra a qual não havia e não há, parece-me, nenhum argumento. A comunidade judaica de Constantinopla havia crescido e prosperado à força de planejar e fabricar armas para os turcos. Isso, porém é passado. O mundo não foi digno dos estados pontifícios.

sábado, 31 de maio de 2014

Opinião e Fato

Outro dia, conversando com uns amigos, tomei conhecimento de um boato preocupante. As imobiliárias anunciariam nos jornais de grande circulação tão somente pelo prestígio, mas não por que haja algum retorno financeiro. Seria muito mais vantajoso contratar exclusivamente as ubíquas setas vivas, esses homens e mulheres que ganham a vida fazendo o papel de estátuas, que se limitam a usar dez por cento da sua capacidade num trabalho que poderia perfeitamente ser realizado por um outdoor. Mas os anuciantes não deixam de usar a imprensa para a divulgação de seus empreendimentos. E a razão é a mesma pela qual alguém vai a festa de um político respeitável. Não é porque o aniversariante é interessante, mas simplesmente para se apresentar como a prova viva do convite.

A causa da falta de credibilidade dos nossos periódicos, permitam-me dizê-lo, é uma busca trágica por manter-se em cima do muro em temas cruciais para todos os brasileiros. Essa ância por mostrar-se independente e equânime não é bom sinal. Não há dúvida de que a Copa tenha sua importância e saber se o novo Romário, seja ele quem for, vai ou não representar o país no mundial é relevante. Mas isso é só um fato. Não é ainda uma opinião. Os entendidos saberão dizer se ele foi convocado por conta de seu patrocinador, ou porque é uma peça importante dentro do esquema tático que o treinador costuma usar. Mas, seja como for, arriscar um palpite é fundamental.

A situação é mais grave quando o campo é a arena política. Aí, manter-se equilibradamente em cima do murdo é uma arte muito parecida com um artifício. E boa parte dela consiste em não ceder aos juízos precipitados. Quando Paulo Malhães morreu, e o Estado não decidiu qual era a versão verdadeira, foi uma obra de mestre. Mas quando os documentos encontrados na sua casa foram usados para uma denúncia contra os militares, ficou claro que se trata de uma peça importante da estratégia política do governo.

Isso é uma opinião. Manifestá-la de modo que jornal não seja acusado de fazer oposição a torto e a direito não é difícil. Basta mostrar que os funcionários públicos que atuaram no caso podem até não ser filiados ao PT, mas participam, quer queiram quer não, de seu projeto de destruir a democracia brasileira, cujo fundamento é a anistia ampla, geral e irrestrita.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

O Elogio de Péricles

Um imperador romano, vendo que alguns estrangeiros traziam seus cachorrinhos no colo e os acariciavam, observou que as afeições do homem foram feitas não para qualquer animal, mas sim para o seu semelhante. Do mesmo modo há quem observe feitos e fatos ignóbeis quando poderia contemplá-los heróicos e edificantes, há quem permaneça com os olhos no chão quando poderia levantá-los para as estrelas. E, quando encontramos um belo astro no firmamento,  surge a admiração e o desejo de imitar. A estrela em questão é Péricles. É verdade que poucos podem fazer da sua biografia o espelho exato da vida de um governante. Mas não há quem não governe algo, nem que seja somente o próprio nariz.

Sua família era nobre. Seu pai, Xantipo, derrotara os persas na batalha de Micale. Sua mãe, Agarista, era neta de Clístenes, que defenestrara os filhos de Psístrato e dera à cidade um corpo de leis que lhe conferiram harmonia e segurança. Em filosofia, foi educado por Anaxágoras de Clazómenas. Participou das reuniões em que Zenão, o fundador do estoicismo,  reduzia qualquer argumento ao absurdo. Foi este último que o defenfeu do boato de que sua serenidade e tranquilidade seriam afetadas e pouco sinceras. Se assim fosse, dizia Zenão, que todos imitem o auto-domínio falso de Pérciles pois adquiririam assim uma virtude verdadeira.

Quando caíram os primeiros combatentes da guerra do Peloponeso, ele, já um cidadão célebre, tece-lhes o elogio. Começa reconhecendo a dificuldade do encargo. As leis exigem que alguém cante as virtudes dos que defenderam a pátria, mas não revela como evitar que os invejosos ridicularizem a verdade que lhes está acima da natureza nem que os conhecedores dos fatos lamentem que tal ou qual detalhe importante não foi mencionado. Mas, como se trata do seu dever, ele se arrisca a pronunciar o discurso. Antes, porém, de exaltar os feitos dos heróis caídos, convinha esclarecer que as consquistas da geração anterior haviam sido preservadas pela sua, sendo um de seus traços principais a democracia. Os atenienses eram livres e igualitários. Se alguém era pobre, isso não se erguia como um obstáculo intransponível para seu avanço na sociedade.  Bastava que fosse útil à cidade. A liberdade de que gozavam no âmbito público se extendia para a vida ordinária, onde ninguém se irritava com o próximo por fazer o que lhe apetecia nem lhe lançava um olhar de desprezo. Mas toda essa abertura não os tornava arrogantes. Ensinava-se a acudir os prejudicados, ainda que isso não estivesse em nenhum estatuto, mas somente pertencesse àquele código que, ainda que não escrito,  não pode ser ofendido sem que se conheça a desgraça.

 

sábado, 24 de maio de 2014

A Revolução

Um homem se aproxima de um ônibus e fura-lhe o pneu. Tem início a paralisação que transtornaria toda a cidade. Alguns motoristas hesitam mas acabam aderindo à revolução. Os rebeldes se cansaram de esperar. Os taxistas exultam com a maior procura pelos serviços. Pais que gostariam de chegar a tempo de se encontrar com seus filhos deixam para depois o carinho e bronca. Não há outra solução senão esperar. E este é o problema.  Há um ditado popular segundo qual a esperança é a última que morre.  Porém, isso não é fato.

O maior desgraçado da opinião pública, o desempregado, é alguém com esperança.  Enviar cem currículos por semana em busca de um emprego mostra que ele vê no trabalho a solução para os seus males e ninguém tem maior esperança do que aquele que encontrou meio com o qual derrotar o mal. Ele bem que poderia, na segunda semana, deixar esse assunto de emprego para lá. Mas seu motivo para servir não falha: o bem do Brasil!  A esperança do desempregado não morre. Ele é um Enéas em alto mar.  Roma é a sua meta, embora tudo a sua volta seja tempestade. Os desempregados, porém, além de serem cada dia menos numerosos entre nós, esperam pela obrigação do trabalho. E aguardar lentamente  uma obrigação é a morte da esperança. O argumento definitivo da revolução da esperança são aqueles homens e mulheres que deixaram tudo no mundo para esperar em Deus.

As cores do livro de História

Paulo Malhães era um coronel do exército que cometeu o terrível crime de tortura. Não há nada que explique suas ações fora do exército. A disciplina militar é algo de que os civis ou não capazes, como é o meu caso, ou algo que eles desprezam, como parece ser o caso do senhor Wahdir e dos respeitáveis senadores que foram interrogar o caseiro.  Este teria mentido porque seu projeto não era somente roubar as armas do coronel, mas também queimar os arquivos que incriminariam altas patentes da caserna.  De fato, seu intuito não era somente lucrar com a venda das armas para o tráfico de drogas fluminense.  Postos a perscrutar o imperscrutável, diremos que sua finalidade era dar as provas que Paulo Malhães sonegou à comissão.

Além dos indícios da traição militar ao povo brasileiro, que os procuradores investigam, havia um disco rígido que despareceu.  O computador apermaneceu intacto, tendo sido subtraída somente sua memória.  Ou aí estavam contidas informações prejudiciais à causa da revolução de 64 ou dados que lhe aprovveitariam. De qualquer modo, era uma questão que o próprio coronel, o único capaz de exumá-la, queria morta e enterrada. As águias do Ministério Público, todavia, tomaram o assunto para si, e o disco rígido talvez serviria para lançar mais luzes sobre o caso. A pergunta, porém, não é se a causa da vingança contra a ditadura pode ou não ser levada a cabo com sucesso. O que, antes de qualquer coisa, seria interessante saber é se há algum sentido em levá-la para frente.  Paulo Malhães talvez devesse ter entregado à comissão as informações dos anos de chumbo. Mas obrigá-lo a isso seria forçá-lo a dizer algo contra seus amigos de longa data. O interesse público, porém, nunca justifica um mal privado.

O que nem o caseiro nem ninguém mais quer é o que acontece. Informações que não servem senão para colorir de negro o passado do país virão à tona.  Manter as aparências não é só algo conveniente. As aparências são a asalvaguarda da verdade. A mancha que haverá nos livros de história da próxima geração não serão o verde e amarelo da bandeira nacional, mas sim o vermelho do sangue dos torturados.

sábado, 17 de maio de 2014

Criméia

Villa Yanukovich

 

A história se repete.  Esta guerra na Ucrânia não teria acontecido se a Rússia houvesse respeitado o acordo de Budapeste de 1994.  Do mesmo modo a primeira guerra mundial não teria começado se a Prússia não tivesse invadido a Bélgica contra o tratado de não agressão assinado por ela, França, Inglaterra e Alemanha.

Os fatos são: revolução laranja de 2004 e apoio de Moscou, rejeição de Yanukovich de integrar a Ucrância na UE, em novembro de 2013, ocupação da praça da independência, massacre de 20 de fevereiro, tentativa de acordo entre a oposição e o governo, que não chegou a termo porque o segundo não aceitou restringir os poderes presidenciais, deposição de Yanukovich e a invasão da Criméia pela Rússia.

"Somos todos macacos"


Dentre outras coisas, o homo sapiens se diferencia dos macacos pela capacidade de planejamento. Ninguém jamais viu um chimpazé tentanto acertar agenda com seu amigo, nem um gorila reclamando da meta impossível que seu chefe lhe impôs.  A liberdade de fazer seu próprio futuro é a essência do humano. O que não significa, é claro, que não tenhamos macaquices.

O futuro não é completamente planejável, e há certas condições da vida humana que simplesmente não são modificáveis pela liberdade, v.g., o instinto de política e o de preservação. Quem, todavia, age somente com base neles é pior que um macaco, para quem isso seria o natural.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Coronel Malhães foi morto por dinheiro!

A metafísica moderna ou é uma teoria da conspiração ou é abortada antes mesmo de começar. Paulo Malhães morreu de infarto do miocárdio.  A opinião de nobres colegas é que pode até ter sido infarto do micárdio, mas, vejam bem, haveria, não podemos ignorá-lo, a possibilidade de o coração do coronel ter parado pelo susto inflingido pelos capangas contratatos para dar cabo em sua vida...

Não, essa possibilidade não existe. Seria preciso uma fé mais cega do que a do Boko Haram  para acreditar nisso. O que aconteceu foi um crime por dinheiro! O coronel tinha várias armas em casa, e o mercado de armas brasileiro é lucrativo. Não adianta, é claro, pedir ao ladrão que se desarme para que a demanda diminua, e, portanto, seria suicídio coletivo proibir a venda de armas. O único que pode ser feito nessa situação - e não é pouco - é um réquiem pelo coronel.

sábado, 10 de maio de 2014

Modéstia

"Para que a praga da vanglória fique longe das minhas crianças, que tu, meu caro Gonell, e a mãe delas e todos seus amigos lhes cantem essa música e a repitam e a martelem no coração delas: que a vanglória é desprezível e é para ser cuspida, e não há nada tão sublime quanto a humilde modéstia tantas vezes louvada por Cristo; e essa caridade prudente tanto fixará como ensinará a virtude antes que reprovar os vícios e as fará amar o bem em vez de odiá-lo."

São Tomas More, numa carta de 1518 ao professor particular de suas filhas. 

 

São Tomas More pede que seja ensinado a suas filhas o amor antes que o ódio. Até aí, nada de mais. É coisa natural que um pai queira que suas filha se comportem bem, sejam filhas obedientes e mais tarde esposas solícitas. E que, nesse longo processo, não terminem rabugentas, achando que tudo é mau a não ser elas mesmas. O que admira é o meio com que almeja evitar esse perigo. Às filhas deveria ser dito e repetido que a vanglória foi feita para o escarro!

Uma profilaxia violenta para um mal violento. De fato, de todos objetivos vazios o mais vazio é essa busca pelo elogio da maioria. A opinião majoritária varia de ano para ano quando não de mês para mês. Mas é a essa opinião que muitas personalidades vão se dobrando até ficarem mirradas e se empequenecem até tornarem-se nada. E não é menos vão buscar agradar os outros sem nenhum outro sentido que o de evitar problemas pessoais.

A virtude é, a uma só vez, singular e boa. Ela pode até se manifestar aos poucos como aos poucos vai crescendo a afeição entre dois amigos. Mas no fim desse caminho de afabilidade está uma verdade concreta, que se encaixa perfeitamente em circunstâncias concretas, sem chamar mais atenção do que o necessário.

A Vida é Assimétrica

Muitos se perguntam o que é a vida, mas poucos têm uma reposta tão precisa para dar quanto Louis Pasteur.  Na sua época a celeuma acerca da origem desse mistério dividia os homens. Uns achavam que Deus fazia surgir a vida do oxigênio, enquanto outros não estavam tão convencidos de que de algo inorgânico pudesse ser derivado algo orgânico. Seria como se do que é menos pudesse sair o que é mais.

Enfim, a hipótese com a qual Pasteur lidava era de que haveria no ar um princípio ativo reponsável pela geração espontânea. Para refutá-la, ele tomou um vaso cheio de um caldo nutritivo. O ar entrava nele através de um longo e tortuoso tubo. Nenhuma vida surgiu. Os germens, ele explica, que são, no caso, a microscópica causa da vida que depois era notada nesses caldos, ficavam presos nas curvas e não podiam chegar ao fim do trajeto para lá se reproduzirem.

Mas não pára por aí o gênio de Pasteur. Ele também reparou que o ácido tartárico natural era assimétrico. Essa imperfeição é o que o torna capaz de girar a luz. Quando feita em laboratório, a substância é perfeita, mas perde essa propriedade.

   A vida, pois, é pequena e assimétrica. Nenhum aristotélico poderia tê-lo percerbido.