quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Uma Barroquice



Na segunda-feira, um de nossos fantásticos colaboradores não apareceu na redação. Feitas algumas ligações, que no momento foram tidas como urgentes, foi descoberto o seu paradeiro. No domingo, ele tinha cantado uma serenata em frente a casa de uma mulher negra, pela qual havia se apaixonado num samba de periferia. Na manhã seguinte, teve que ficar na cama. Ela, porém, estava resolvida a não abandonar a sua solidão por nada desse mundo.  Desencantado mas tranquilo, ele então lamentou a dor dela da seguinte maneira.

A rainha de Sabá hoje mora
acompanhada só de seus felinos,
lá bem longe, onde esse sino que dobra
já perdeu o que tinha de sombrio.

Como a alba, que pouco se demora
e cede passo logo à luz de estio,
o que há de belo nela desmorona,
em flagrante contraste com o Rio.

A cidade, intacta, permanece,
enquanto ela dentro se desloca
- como a rosa que vive e fenece-
Entre a vida e a morte que não choca.

O calor de tudo sempre arrefece:
da rainha, da flor ou da aurora.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Um Pedaço da Memória de G. K. Chesterton








O desejo mimético mostra que ao tentar destruir o outro, o que queremos é impedir que ele conquiste o bem cuja beleza nos encantou. Não se trataria, portanto, de uma má ação, mas sim de um meio imprescindível para a eficácia. Há, porém, uma maneira de falar mal que é como música. E uma dessas canções oníricas, que termina bem depois de um início estranho, é a que canta Chesterton quando diz que os americanos são antiquados. Empunhando a espada da ironia, ele assim corta os seus leitores em dois: só aqueles que entendem que o próprio Chesterton defende causas tão veneráveis quanto o começo do mundo riem. Ser antigo é absolutamente necessário. É uma delícia olhar para trás e rememorar a época em que a atenção da mídia estava voltada para um só ponto. E aí estava justamente o próprio Chesterton, o que mostra não ter ele cedido à falsa humildade de não falar de si mesmo em público. Ao contrário do que alguns acham, Chesterton é tão extrovertido quanto Mr. Micawber.
 
Mas esse passado, como a origem girardiana, é violento. Nele o autor do relato se lembra de um empregado de um jornal americano cujo estilo era diferente do seu. Segundo Chesterton - o duplo que é ao mesmo tempo narrador - a América é a terra da propaganda, e isso influenciaria a redação dos periódicos. Alguns acham que isso deveria ter sido dito literalmente, mas a letra não importa. Sem nenhuma dúvida, ele identifica os americanos com os chineses, uma vítima antiga do Império Britânico. Surge, porém, uma saída para a crise mimética. Chesterton admira Nathaniel Hawthorne pela sua técnica e Walt Whitman pela sua força e sinceridade. Eles, porém, não são conhecidos pelo jornalista cogitado, cujo modelo é antes algum autor famoso de comerciais televisivos. Se a mediação externa não é comum, os duplos se aproximam... e o combate começa.

Contra as ideias contidas nos jornais, Chesterton afirma que o homem é livre e que toda a futurologia é uma inversão da prudência e uma selvageria. Isso é evidente, mas alguns se preocupam com a previsão do PIB, cuja cientificidade é atestada pela precisão numérica. Eu também me preocupo com isso, já que menos dinheiro pode significar menos lazer e menos cultura. E a precisão matemática, que é o prêmio da disputa, cresce até ocupar todo o campo da visão. A ciência não é infalível, mas algumas vezes ela posa como se fosse. E, para conseguir uma aparência de credibilidade, ela se adorna com o atributo da quantidade exata. Não importa qual é a diferença específica de um átomo de carbono, uma questão sobre a qual é impossível falar por mais de um minuto. O que importa é quantos elétrons ele pode ter, e isso qualquer pessoa prática entende. Essa precisão, no entanto, pode ser desviada para fins sinuosos, como quando se tira uma estatística da manga para provar que o número de ateus tem crescido. Isso, obviamente, não leva em conta a tendência indígena ao drama e a portuguesa ao fado. Que Deus tenha morrido é algo triste e belo, e confere uma aura de Fernando Henrique Cardoso a Jair Bolsonaro.

Toda essa batalha, no entanto, pode ser vazia e terminar numa festa. De fato, Chesterton não tem certeza sobre a verdade do relato do jornalista. O objeto da discórdia, porém, existe. Ele percebe e o diz com toda a clareza: não há identidade entre o que ele sabe que a ciência é desde há muito tempo e o que vai impresso com as letras do prestígio desde outro dia, quando Gutenberg inventou a imprensa. No entanto, é essa imagem falsa que se espalha, e a democracia pode ser enganada. Chesterton termina com elegância e faz com que o clima volte à tranquilidade. Ele já tinha feito algo parecido ao forjar um adversário hipotético como quem não deseja entrar em conflito com nada que seja mais que um pesadelo. Agora, o seu toque de mestre é se identificar com a sua vítima de tal maneira que ele se torna o seu modelo através da maioridade do desejo. Ele também prevê um futuro - não só, porém,  como quem faz ciência, mas sim com toda a intensidade de quem enuncia uma profecia terrível. Todavia, por trás da seriedade de uma maldição, lateja sempre um afeto.

"Eu acredito que a terra gira em torno do sol; mas eu não mais acreditarei se Thomas Edison afirmar que aço e concreto girarão em torno da terra. Se você nega o que os homens sabem à luz do que eles não sabem, eles simplesmente resistirão à ciência de uma vez por todas; e a grande obra do século XIX será perdida por séculos."

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

As Duas Democracias



Os matemáticos são pessoas tão focadas que perdem a capacidade de ir de um conceito para o vizinho. Nas ciências humanas, porém, dançar entre a etimologia e o significado é uma habilidade sempre a ser conquistada. O termo democracia, por si só, não diz mais que o governo da maioria. A maior parte do movimento democrático atual, porém, sonha como uma espécie de técnica social que substituiria o significado de poder do povo pela garantia de que os grupos diversos não se aniquilem uns aos outros, mas acabem com qualquer maioria.

De fato, ninguém apela para o critério quantitativo, que ganha vida nas assembleias dos cidadãos, onde a posição que contava com mais votos, fosse ela qual fosse, seria a aceita. E o Olavo de Carvalho também não o faz porque ele não é bobo. E também, imagino, porque a verdade é que há muitas razões para abandonar a ditadura da superioridade numérica. Talvez as melhores são para que as diferenças, que não são más em si mesmas, sejam respeitadas e para que a sociedade seja preservada como um espaço de convivência que não se reduza à mera concordância. Alguém precisa escrever ou me indicar um estudo liberal sobre esses fatores. Uma opinião, no entanto, é impossível. Se a conclusão mostrar que de fato a maioria é uma opção superior à tecnocracia, quase ninguém das humanidades o levará a sério.  E a razão da turminha eu já dou aqui, porque é tão fácil quanto qualquer tautologia: um governo não científico, gente, não é científico.

domingo, 2 de outubro de 2016

O Enigma dos Anões




“Os talentos desse ‘caleidoscópio da vida’ 
devem se adaptar à evolução do mercado e do mundo.”
Biólogo Evolucionista
(Disfarçado de Administrador de Empresas)

Onde o talento é um anão,
A autoestima é um gigante.
Seu Lunga
(depois de aprender na FFLCH como dar indiretas)


Na prática, a comunidade nem sempre deixa o trabalho intelectual ser possível. Mas o principal defeito do pragmatismo é, diante da primeira aporia, jogar a toalha, como se toda a história da ciência fosse uma sucessão de contradições, e a única solução fosse descobrir o consenso da galera. Uma ideia sempre tem algo a ensinar, ainda que não seja uma explicação perfeita. A discriminação, por exemplo, que teria sido refutada pelos estoicos, ainda contém uma lição indiscutível. É, portanto, inaceitável a afirmação de que a situação da Colômbia é complexa demais para ser entendida. Alguns bandidos querem o direito de ser cidadãos e, no entanto, eles merecem no máximo a tolerância de não serem presos. Se a maioria da população quiser sacrificar a sua tranquilidade em troca de inclusão, trata-se de um ato heroico de liberalidade, próprio de um rei.

E qualquer um que teve um pai sabe quem é o rei da floresta.  Há, no entanto, várias maneiras de entender o significado disso. É possível, a partir daí, afirmar que o leão tem o domínio sobre os demais animais de dois modos. Ou - o que seria falso - ele impera pelo medo, ou, como aconteceu com as formiguinhas lá de casa, ele tem o reconhecimento dos demais. Da mesma maneira, quando alguém, adulterando a séria tradição das fábulas, diz que não é a juba o ápice a criação, há também algo vago que precisa ser definido. Se não é ele, é a turba. Ninguém, no entanto, sabe quem ela é, e o máximo que eu posso fazer aqui é identificá-la como a tal da opinião pública.

No entanto, nem todos são como Thomas Bastos e buscam convencer com as palavras. Há outros que, como Marcola, ameaçam arrasar com as armas. A hierarquia é clara entre esses dois modos de ir pela vida, já que a violência é inferior mesmo à mais baixa das retóricas. De qualquer maneira, entre essas duas maneiras de ser há algo em comum. Ambos, de certo modo, tentam fazer com que a interesse de um certo grupo prevaleça. Existe, no entanto, um âmbito que é mais conturbado do que o do causídico e o do seu cliente: o da medicina. Aí pode haver uma conflito interessante entre o doce paciente e o seu doutor.

E é precisamente aí também que reside o argumento da diferença, uma realidade que, silenciada pela ideologia do gênero, tem causado algum estrago. De fato, poucas vítimas têm sofrido tanto na mão da opinião pública quanto a discriminação, esse hábito terrível de perceber que um picareta é um picareta e que nem todo trabalho marretado é acochambrado. No entanto, seja-me permitido um anacronismo para explicar a coisa. Se, quando o Brasil sequer existia, um índio defendesse que a melhor dieta para um colega de tribo era uma erva de gosto amargo, ele estaria em maus lençóis. Se, por acaso, ele ousasse  dizer que era necessário torturar o paladar de alguém que já estava doente, a turba talvez ficasse escandalizada com tamanha desfaçatez em propagandear o mal. No entanto, se a erva amarga fosse um remédio, a discriminação salvaria uma vida. Essa fábula, no entanto, eu temo não ser só um anacronismo, mas também uma falsidade atual.

Tratar todos como iguais, assim,  é viver no tempo dos aborígenes. Outra discriminação imperiosa se dá quando o tema é a saudade, um dos sentimentos mais caros aos fãs do fado.  Quando um marinheiro deixava o Tejo para se divertir na América, ele deixava nos olhos lacrimejantes das mães a marca de uma ausência. Nunca existiram, porém, duas nostalgias idênticas, porque as presenças tinham sido distintas. E isso é óbvio porque, embora o mesmo fado seja cantado por duas senhoritas, as verdades por detrás de qualquer poesia não são as mesmas. De fato, não existem duas pessoas iguais, alegres ou tristes. Assim, da próxima vez em que alguém citar Tolstoi para dizer que cada família é triste à sua maneira, o melhor a fazer é lembrá-lo que qualquer ser pessoal, sorridente ou choroso, só é se for do seu jeito.

No entanto, a discriminação não está presente só na distinção que separa a saúde da doença e a lembrança da vaga ideia de que algo foi perdido. Há empresas e universidades que se acham no direito de julgar a disciplina dos outros. E o parâmetro do juízo algumas vezes não é - sinto informar aos ingênuos - a moral universal. Pelo contrário, o critério para saber se um funcionário é bom ou não é o interesse da própria coletividade, que tem a força de um imperativo categórico. Assim, aplica-se a esse tipo de situação o que Nietzsche dizia acerca da fonte da ética. Para ele, a moral sempre diz de si mesma que ser a única origem do certo e do errado. A moral, portanto, louva-se a si mesma como causa incausada, o que seria estranho.

Isso, no entanto, não chega a ser uma aporia, porque só é possível saber que a moral deveria ser condenada porque ela mesmo nos deu, antes, o argumento a favor da humildade, uma amostra clara de falta de amor próprio.  Além disso, muitas vezes as pessoas aceitam que avaliem o seu desempenho. A autocrítica não é possível na situação atual da humanidade, quando o interesse na própria imagem é forte demais. E a solução é, portanto, que o chefe exija algumas melhoras antes de mandar o emprego passear, porque, enfim, assim talvez o que não nunca deverá ter acontecido não aconteça. No entanto, convém que esses milhares de pequenos empreendimentos não se destruam a si mesmos confundindo a dificuldade de conhecimento próprio com o atrativo de ser besta.

Ser besta é bom porque se o próprio funcionário fala mal de si mesmo, não é necessário mais nada  para negar um aumento salarial. No entanto, o obstáculo da autoavaliação é duplo: ele não só impede o reconhecimento dos próprios defeitos, mas também torna mais complicada a apreciação dos próprios méritos. E, se nem o chefe percebe isso, um funcionário que seria ótimo em outro lugar vai embora. Quando Maquiavel afirma ser a república superior à monarquia, este é o seu assunto. A flexibilidade do primeiro tipo de estado permite que o problema não seja resolvido somente de uma maneira, mas sim de várias. O príncipe, porém, é incapaz de aceitar que outro toque no leme da embarcação.
Uma vez devidamente morto o déspota, é um erro achar que, no regime que o sucede, todos querem governar. Ter um cargo de governo é viver de correria em correria, algo bárbaro. Quando a Pandora - protótipo do Spotify, e ninguém se lembra dela - cresceu, alguns dos fundadores debandaram. Eles não aceitavam ditar a vida de outras pessoas. A vontade de permanecer pequeno e não escalar na pirâmide social é algo mais radical do que ser besta. Enquanto esta acha que é só desagradável dizer não às pessoas quando elas já não são interessantes, o desejo dos anões simplesmente não admite sequer estar na posição de ter que fazer isso. A aporia dessa questão, no entanto, é tão grande que ela se transforma num enigma. É impossível saber se os pequenos desprezam o ato de governar os outros porque eles temem ser descobertos como príncipes ou porque eles simplesmente teriam uma tarefa diferente para realizar. Portanto, da próxima vez em que você quiser ter um bom sentimento e sentir pena de um marquês em traje de plebeu, é bom estar alerta: há certos erros que foram planejados.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Uma Vitória Passageira dos Bárbaros


Nós começamos com os bárbaros e vamos acabar com eles. No entanto, ainda não foi dessa vez. André Baco, um dos colaboradores da Tuba, achando-se douto o suficiente para se tornar um, digamos, mestre quando o assunto é a originalidade em Plauto, como ninguém lhe havia dito nada em sentido contrário, foi em frente e desafiou a Maior Autoridade para um debate de alto nível. Ele, de fato, havia dito na banca de qualificação que havia dois elementos da comédia plautina. O primeiro é grego, e o outro é romano. Como, no entanto, é impossível ter certeza física sobre de onde saiu cada um dos versos, o jeito era analisar o estilo e, principalmente, as referências. Se, por exemplo, há uma menção à justiça, é bastante razoável que a coisa seja romana, já que os gregos tanto não tinham preocupação com a equidade que não produziram nada parecido com o direito romano. O mesmo acontece se há uma menção às saturnálias, uma festa religiosa do Lácio. Que essas e outras romanices destoavam do ideal da arte grega não é algo a ser desprezado.

No entanto, isso, além de ser a opinião de Fraenkel - uma Maior Autoridade Internacional já falecida - é o que não poderia ser: senso comum. Durante a banca de qualificação, de fato, o professor Alexandre Hasegawa - que, embora não tenha nada de sagrado, tampouco tem algo de vaca - avisou ao nosso amigo que a Academia não tinha nada a ver com senso comum, e que, portanto,  a referência dos conceitos deveria ser expressa. Isso faria, por exemplo, com que se soubesse se a imitação era platônica ou aristotélica. Como, todavia, não há diferença entre Aristóteles e Platão dentro do senso comum, o contribuinte da Tuba não seguiu essa recomendação, concentrando-se na análise da discurso. O professor Alexandre havia dito que as figuras de linguagem são importantes, ainda que sejam mera retórica. Portanto, foi necessário mostrar que a peça não é muito diferente de um argumento jurídico criativo, algo que o pessoal do filme Getúlio tentou em vão fazer. A diferença entre o fórum e o teatro é que, diante da plateia, não há a necessidade de base legal, e diante do juiz há um dever de clareza que não está presente na ficção. Uma alegoria, por exemplo, não cai bem no discurso de um advogado que quer se fazer entender, mas é a única saída para um dramaturgo que não podia se manifestar de outra maneira.

A Maior Autoridade, cujo nome não somos dignos de enunciar, não tinha nenhuma objeção contra o senso comum. Pelo contrário, tendo, desde o começo de sua carreira, evitado qualquer atrito com os seus colegas de Academia à força de acompanhar as modas metodológicas, ela sempre seguiu a platitude de que ficção é ficção, e qualquer relação com a realidade seria mera coincidência. Porque, uai, ninguém pode saber com certeza que Plauto entendia o que era verossimilhança. Assim, não haveria lugar para um estudo sobre um autor que, pasmem!, ousasse misturar história de Roma à arte dramática romana. No entanto, talvez a Maior Autoridade tolerantemente aceitasse essa interdisciplinariedade se não fossem algumas outras ousadias.

André, no entanto, não deseja a misericórdia da tolerância, mas sim a reciprocidade da justiça. Se ele, quando concordou com o que a Maior Autoridade dizia, não deixou de louvá-la por escrito, por que ela também não faz o mesmo? Pelo contrário, ela teima em se fazer de desentendida mesmo diante das maiores obviedades. O contribuinte da Tuba diz também que uma tradução deveria ser completamente fiel ao original quanto ao gênero e deveria diferir dele sempre que fosse necessário para tornar o que era claro ontem claro hoje. Se a Maior Autoridade tivesse falado contra isso e não contra algumas notas de rodapé ou a falta de ordem alfabética na bibliografia, André estaria satisfeito. Mas a tempestade fatal, que deixou o barco do André navegando sem rumo nesse mar sem margens da sabedoria, foi a objeção da cientificidade. Seria impossível conjecturar um possível erro na edição da Harvard. Emitir as próprias impressões, enfim, seria um crime segundo a concepção moderna de um mestrado bem feito.

E uma das impressões que não foi reconhecida como verdadeira era de que a Maior Autoridade está errada ao não aceitar como científico algo que, embora fora de moda, não foi refutado: a ideia simples, enunciada pelos próprios latinos contra seu interesse, de que os gregos, vencidos, venceram os romanos. O relativismo não permite aceitar ingenuamente a superioridade objetiva de outra civilização. É necessário ser crítico, desde que não seja contra o estado atual das humanidades. A Maior Autoridade reúne, pois, os atributos da vaca sagrada: a lentidão para entender um argumento novo e a consideração de sua pessoa como algo intocável. Ninguém, de fato, pode encostar um dedo em nenhum bem do ser humano, mas André, salvo engano, tem um bom cúmplice nesse delito contra a fama: o Cristo  que, quando mencionaram outro rei, chamou-o impetuosamente de uma raposa. De fato, não há nada tão desagradável quanto ver o seu povo à mercê dos sofistas. André quase chega a dar razão aos versos dionisíacos de Camões:

"Este povo que é meu, por quem derramo
 As lágrimas que em vão caídas vejo,
 Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,
 Sendo tu* tanto contra meu desejo!
 Por ele a ti rogando choro e bramo,
 E contra minha dita enfim pelejo.
 Ora pois, porque o amo é mal tratado,
 Quero-lhe querer mal... será guardado."

* O "tu", no texto original, refere-se a Júpiter. Podemos sem dúvida entendê-lo como uma mediação externa que se tornou interna.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O Retorno da Vaca


Há dois modos de entender o estágio da secularização contemporânea. Uma, de corte mais sociológico e jurídico, consiste no reconhecimento cada vez mais acentuado da autonomia dos entes temporais e numa diminuição da poder da Igreja nesses assuntos. A segunda, mais direta, é a transferência deliberada dos valores nascidos a partir do cristianismo para uma esfera filosófica imanente, que se pretende radicalmente alheia à qualquer religião. Não há nessa última ataque frontal contra a Igreja. Pelo contrário, há a admissão de que os valores cristãos são positivos mas, ao mesmo tempo, há o pressuposto de que o único possível é a diferença do que foi feito até agora. A diferenciação, no entanto, não é prescritiva, mas sim uma condição de significado. Só o novo realmente diria algo. E o novo não tem só uma definição negativa. A sua positividade é a justiça social.

Os anos 60 na França são um marco na história dessa linha de pensamento, e seu âmbito é muitas vezes o da linguagem. Numa aula magistral sobre a destruição da Biblioteca de Alexandria, o professor Christophe Roco menciona de passagem a fecundidade da reflexão dessa época como algo comparável às filosofias de Platão e Aristóteles na Antiguidade. Depois que Sartre havia dito que não acreditar em Deus seria um tanto incômodo para quem quisesse preservar a moral, mas que isso era um fato inafastável, aparece uma geração de pensadores que, atolados nesse deserto, imaginam um oásis. Algo parecido tinha de fato acontecido na Grécia na medida em que a religião oficial tinha sido desacreditada. A interpretação que Derrida, um dos humanistas daqueles anos, faz de Voltaire mostra, no entanto, que havia uma solução de continuidade no do movimento para fora do círculo de influência do sagrado. "Quando trata de tolerância, o Dicionário Filosófico de Voltaire reserva à religião cristã um privilégio duplo." As prerrogativas são os elogios devidos àqueles primeiros cristãos que tinham dado a vida pela tolerância e pelo respeito. Essas ideias e outras como essas são o sempre novo.

Entre este Voltaire e o próprio Derrida, no entanto, havia o abismo de um escândalo. Quando isso acontece, há uma volta à violência de que a religião até então havia poupado a sociedade. Trata-se de mais um impulso irracional contra algo inofensivo. No caso de Derrida, a sua vítima é o conceito. Como bem nota Habermas, "o trabalho rebelde da desconstrução [...] tem o interesse principal de inverter o primado da lógica sobre a retórica." Isso, no entanto, não acontece só pelo sádico prazer de destruir, mas sim em nome do único que sobrava no deserto: a metamorfose indefinida do ser humano, que teria vindo literalmente do nada e não iria a nenhum lugar em particular. Assim é coerente que, não reconhecendo nada de fixo no homem, essa filosofia afirme o primado da retórica sobre um discurso mais científico. Seria injusto, no entanto, dar a impressão de que Derrida se acha um messias. Ele mesmo defende uma "messianidade sem o Messias".

Isso, porém, não é perseguição, mas tão somente uma indiferença um tanto afetada. A vantagem de não ser lógico é que não há um inimigo definido. Derrida não é contra nada que não seja a injustiça presente, segundo ele, em qualquer ordem, como se ela não estivesse presente - em dose mais do que suficiente - mais perto do que imaginamos.  E essa guerra é empreendida também em nome do que ele afirma ser uma loucura: o perdão. De fato, se não há pecado pessoal, não há nenhum interesse pessoal em perdoar, e esquecer uma ofensa contra si é tão gratuito quanto descobrir, um dia, que se sofre de Alzheimer. "Com a transformação do pecado em culpa, e da violação dos mandamentos divinos em transgressão de leis humanas, algo certamente se perdeu."*  O que exatamente se perdeu pode ser entendido com um fato recente da política brasileira.

Sérgio Moro condenou pessoas que haviam transgredido as leis. Se, no entanto, ele fosse um discípulo ideal de Derrida e tivesse perdoado a todos os criminosos, ainda que esses dissessem que iriam fazer tudo de novo na primeira oportunidade, haveria aí um perdão dionisíaco, incondicional, ilógico, como nunca antes se viu. Quando a misericórdia é uma loucura, a civilização vira um hospício. Essas e outras messianidades, no entanto, são melhores do que qualquer nihilismo. A vaca voltou do brejo!

* Essas e outras citações são tiradas do artigo "La Secularización de la Cultura Contemporánea", de Massimo Borghesi.

domingo, 7 de agosto de 2016

Um Limite da Boa Educação



Há certos assuntos que, ainda que necessários, devem ser tratados com uma máscara anticontágio. Flávio Morgenstern, resistindo à tentação da indiferença, já disse quase tudo. O tratamento midiático do caso Biel é estranho porque, à primeira vista, parece ser algo bem intencionado. No entanto, é um delito em que, como diria Girard, a mão direita não sabe o que faz a esquerda. E o que a esquerda faz é relatar o assunto como se fosse um caso pertinente somente às leis promulgadas pelo Senado Federal, depois de um longo processo e infinitas discussões técnicas, e não algo bem mais simples.

Biel, depois de assediar uma jornalista, perdeu a fama. Saber qual foi a razão última pela qual o funkeiro não é mais uma celebridade é algo que ultrapassa em muito a capacidade de um blogue. No entanto, uma coisa é facilmente identificável em meio às notícias sobre o tema. Biel dividia as pessoas em duas categorias: as interessantes e as desinteressantes. Distinguir um cavalo de outro é algo que pode ser feito sem maiores problemas, mas mexer com seres humanos e sair impune não é tão fácil. E, ó ironia!, foi alguém tida por ele como interessante que lhe mostrou isso.

A indignação geral da nação, no entanto, é um pouco exagerada. Se a carreira de Biel tivesse sido sacrificada em troca do apreço pelo pudor, qualquer hipérbole estaria justificada. No entanto, não foi assim. Além disso, há uma atenuante silenciada. Quando disseram ao Biel  que ele podia bancar o bom selvagem, ele acreditou por pura inocência. Quem, desde a década de setenta ousa dizer publicamente que sexo pode ser uma tragédia? Ninguém. A próxima vítima, obviamente, será a educação, como se essa pudesse resolver o problema. Podem dizer que, no final das contas, era o professor ou o pai de Biel que tinham o dever de lhe ensinar as regras de como se comportar com a elite intelectual do país, que, no momento, faz e desfaz a opinião pública segundo a agenda do gênero. A tática do discurso é claramente dar peso à vontade individual e tirar importância da ética. Assim, o professor de Biel deveria ter explicado que o consentimento é tudo. A educação, porém, não é o remédio.

A vítima principal do caso é uma jornalista, mulher e, se não fosse pela lei, indefesa. O que mais impressiona nas suas falas é que não foi a falta contra a virtude do pudor a razão pela qual ela se sentiu ofendida. À sem-vergonhice de Biel ela poderia, tranquilamente, ter oposto uma defesa do respeito mandando-o por exemplo voltar para o chiqueiro de onde escapou ou qualquer outra resposta nesse estilo. No entanto, ela é um vítima completamente ingênua, como mais um bom selvagem que ignora o pecado original. De fato, a senhorita admitiu que, antes do assédio, foi simpática com seu algoz. A julgar pelo desfecho, ou ela de fato não queria nada além de uma entrevista ou ela se arrependeu logo que viu de perto a fera. Portanto, o único motivo pelo qual ela foi simpática é justamente a boa educação. Ser civilizado às vezes facilita a invasão dos bárbaros.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

A Companhia dos Cães Solitários

"Para que mímese se torne completamente antagonística, o objeto tem que desaparecer." Girard.

O objeto nada mais é do que o foco da memória. Em casos extremos, ele nunca é completamente apreensível. No entanto, é possível conquistar uma acúmulo de indícios que redundem numa certeza. Do contrário, o inconsciente freudiano seria só uma mística de quinta categoria. Maquiavel não era consciente das consequências desastrosas de sua filosofia moral, e uma delas pode muito bem ter sido o idealismo alemão. Para efeitos da Tuba, esse pode ser definido como a identificação confusa entre a razão e o mundo. Hoje, por exemplo, vige a moda de que, fora da academia, é extremamente complicado dedicar-se aos livros.  Essa ideia, no entanto, não é completamente certa. Conheço gente que lê bem, mas nunca foi adestrada nos rigores uspianos, que até têm a sua utilidade mas não são imprescindíveis. Tomá-los por pressuposto impossibilitaria a cultura fora do quadrado acadêmico.

Na medida em que os fins justificam os meios, e o fim nada mais é do que um projeto ambíguo, qualquer besteira está justificada. No marxismo, como bem lembra o Olavão, a redução racionalista é prospectiva e acaba no exato oposto do paraíso do proletariado. Na poesia, as consequências não são tão graves. No entanto, há uma certa indisposição que, transformada em versos, é tão incompreensível quanto o erro político. Reclamar das canções que expressam sentimentos líricos faz terra arrasada de metade desse labor excelso das palavras que é a poesia.

De fato, um dos correspondentes da Tuba no Recife descobriu, num espólio abandonado, um manuscrito inédito que tudo indica ser uma emulação de "A Casa Vazia." Como não se trata da caligrafia do autor desta maravilha, Alberto da Cunha Melo, mas sim de uma letra mais clara, que às vezes era deixada para trás sem ter sido completada, alguns dizem que deve ser de um amigo mais velho, médico  e viúvo convicto, que também fazia uns versos bissextos e era bastante competitivo. Para ele, o poema em questão era um convite a abandonar o individualismo. Senão, vejamos:

 Poema nenhum, nunca mais,
 será um acontecimento:
 escrevemos cada vez mais
 para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.

Depois que sua esposa faleceu, o doutor tinha resolvido dedicar-se completamente ao trabalho e não ia a festas de nenhum tipo, o que Alberto não achava bom porque impossibilitava que ele encontrasse uma nova companheira. Quando o esculápio leu a "A Casa Vazia", achou primeiro, como vimos, que seu tema era a própria escrita, o que costuma ser chato. No entanto, perdida a objetividade, viu que era possível interpretá-lo trocando o referido usual do vocábulo "poema" pela arte de devolver a saúde aos doentes. Assim o "deserto particular" se transformava no seu tão louvado hospital, que para ele tinha sempre sido uma poesia cheia de transcendência. Alberto seria bem capaz dessas zombarias sofisticadas. Muito lógico e fulo da vida por, dentro do texto, ocupar o lugar do cão, o médico respondeu latindo assim:

Iracema nenhuma, nunca,
Será para mim uma princesa,
Nem roçará em minha nuca
para consolar essa tristeza.

Às lágrimas que choro agora
Basta um lenço... e vão-se embora.

Ser um Batista solitário,
Os cães dizem que é muito estranho,
Pois é do amor ir pareado.

Mas, noite e dia, há companhia,
Mesmo numa casa vazia.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

A Clandestinidade do Aborto: Uma Luz Que Ainda Brilha



O diálogo que segue é uma reprodução exclusiva de A Tuba. Ele não passa de uma conversa em busca da verdade. Juliano é um nome fictício de um rapaz escandalizado pelo boato de que a causa abortista ganharia força. Carlos, também um personagem real disfarçado, é um advogado de um escritório paulista e aluno uspiano do programa de doutorado em Direito Econômico.

Juliano: A escolha de Flávia Piovesan vai matar as criancinhas.

Carlos: Olha: eu não nutro simpatia por ela. Mas cadê a fonte dessa afirmação da Flávia Piovesan?

Juliano: Está aqui nessa entrevista. Ela é favor de eliminar o bebê que vai nascer. A Flavinha diz como se fosse algo pacífico: "É consenso que o aborto deve ser visto como caso de saúde pública e não como caso de polícia. É lamentável a morte de mulheres em razão da prática do aborto ilegal". Matar um feto é como matar um adulto doente, que também não tem autonomia. Se um ato é um homicídio, o outro também é.

Carlos: Ela não é a favor de "eliminar o bebê que vai nascer". Só disse que o aborto é uma questão de saúde pública, não de polícia. Meu amigo, você é capaz de mais do que um silogismo barato.

Juliano: As mulheres têm direito sobre o próprio corpo. O feto, porém, não é o corpo dela. Imagina que você tem um apêndice estragado. Você o extirpa porque é desnecessário. Mas o feto, à medida em que os anos passam, mostra que era mais do que um órgão supérfluo. Se você tivesse sido um apêndice arrancado, eu não poderia conversar com você. Esse tipo de perspectiva temporal falta aos defensores do aborto. Eles acham que um feto não cresce.
 

Há um sério risco de a legitimidade da interrupção voluntária da gravidez ser baseada numa concepção da racionalidade atual. Ou seja, se o feto não pensa em ato, ele não é tão merecedor de ser amparado pelo Código Penal quanto um adulto. Trocando em miúdos, ele morre por ser quem é, o que é mesmo que matar alguém por ter nascido pobre ou preto. Certamente, alguém dirá que a analogia não se aplica porque uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. De fato, uma coisa é uma coisa, mas o feto talvez não seja.

Não há dúvida de que o bebê na barriga da mãe pode ser algo completamente distinto de uma pessoa. No entanto, a possibilidade de o feto não ser uma coisa é um fato. Em suma, o abortista é alguém que assume o risco de matar alguém, o que caracteriza um assassinato.

Para apoiar o Michel Temer é necessário um mínimo de convergência, o que depois disso se tornou impossível. A outra oportunidade era Eduardo Cunha. Todavia, ele, cuja esposa de fato gasta um pouco acima da média, é mais uma vítima da ditadura do judiciário, que se mete onde ele não é chamado. O núcleo democrático é a Câmara, que supera em representatividade inclusive o Senado. Se alguém troca o deputado escolhido pelo povo pela retórica constitucional, está aberto o caminho para a guerra de todos contra todos. A lei, de fato, nunca foi capaz de condenar os crimes perfeitos.

Os advogados tendem a dizer que a solução para a crise familiar que desemboca no aborto é o respeito às normas regularmente promulgadas. A técnica legislativa é assim adotada como Deus ex machina. No entanto, ainda que fosse legal, se um crime não deixa de ser injusto porque é aprovado pelo parlamento, muito menos se a única justificativa é a chancela do poderes executivo ou judiciário. O único remédio possível é acabar com a família antes que ela acabe com o bebê. Uma maneira de fazer isso sem destruí-la por completo é permitir que os pais decidam para onde enviar o filho.

A legalização do aborto causaria mais problemas na medida em que, ao contrário do propagandeado, aumentaria ainda mais a clandestinidade ou nível de inconsciência do injusto. Se as clínicas que cometem o crime hoje não o fazem com transparência é porque ainda resta na sociedade uma luz. A melhor maneira de entender isso é enxergar que, por mais hábil que seja um orador ou um governante, há certos mecanismos que tem uma objetividade própria. Matar em série é algo que prejudica não só as vítimas, mas também os fatos, que então são varridos para debaixo do tapete como se nada tivesse acontecido. Foi assim com os eugenistas, que esqueceram mais uma vez o que é a igualdade e que, em 1974 num congresso em Nova Iorque, cogitavam de novo a sério o determinismo gênico como razão de estado. Olhar para trás e ver que um discurso justificava a iniquidade aumenta as trevas.

Os gregos já tinham previsto tudo. E isso fica patente não só no mito de Ícaro, mas também em outro menos célebre. Contam que Dédalo havia ensinado a Talos, um rapaz mais novo, as artes que conhecera. No entanto, Talos, depois de ter recebido a educação, pagou por ela um preço caro. Ele foi assassinado por Dédalo. A técnica legislativa é um ótimo instrumento contra a tirania. No entanto, ela é impotente contra a sociedade que a criou.  Logicamente, para esconder seu crime, Dédalo inventou que tudo havia sido um acidente. Na esfera laicista, essa é a saída para os que cometeram um delito: dizer que não sabiam, e que foi tudo um erro não intencional. Mas, depois, pedir uma nova chance ao povo seria abusar da sua paciência.

domingo, 19 de junho de 2016

Uma Espera Iugoslava



            O surfista de Saquarema, tendo ouvido que há novos Homeros na Iugoslávia, deixou a praia e foi passar um pouco de frio naquelas plagas. Não conseguiu achar ninguém que cantasse exatamente como o primeiro entre os bardos, mas trouxe consigo uma amostra de que a rapidez da civilização ainda não fez seus estragos por lá. É uma canção sobre a espera, e a sua tradução inédita é cortesia da Tuba, algo que ela espera continuar fazendo com a ajuda dos leitores:

           
            Por entre os campos de inverno

            Em tudo brilha a luz clara,

            No azul do céu e da água,

            No invisível inseto.



            São lugares bem alegres!

            E não lhe falta o trabalho

            De homens agasalhados

            De certo manto perene.

           

A borboleta em larva

Promete uma primavera

de colorida algazarra.



Mas vem vindo de outras eras,

Sem ser nada dado à farra,

O tempo que tudo encerra.

sábado, 11 de junho de 2016

Mais Uma Transversalidade



A única bandeira é a verdade, e o resto que se exploda. É frequente, no decorrer do tempo, que os gênios sofram algum tipo de incompreensão. Mommsen, quando escreveu a sua História de Roma, colocou, em meio a indagações que poderiam ser provadas, uma hipótese de difícil evidência. A classe sacerdotal da capital italiana teria influenciado secretamente a política. Quando um assassinato ocorre e o crime é perfeito, não há testemunhas. Se os senadores que tramaram a morte de Júlio César pediram conselho a alguém que, com uma veste talar cinza, resolveu, numa taberna podre, ir além dos augúrios em troca de algumas moedas, ninguém jamais saberá. Do mesmo modo, a única fonte dos feitiços da Idade Média são os historiadores que, pobres coitados, por um estranho dever de ofício, são obrigados a considerá-los palavras sem nenhum efeito, como se não houvesse outro ser estranho disposto a emprestar-lhes a eficácia do mal, que algumas vezes é só a confusão. 

Outra hipótese difícil, sem a qual o debate atual sobre ideologia de gênero não aconteceria, é o de que não há diferenças entre homem e mulher. Aqui, porém, há provas diretas contra essa opinião. A virilidade e a feminilidade seria uma só coisa mutável. Rafael, outro gênio com quem conversei ao vivo hoje – há muitos outros por aí e diversíssimos – foi a uma audiência pública para tratar do tema. Ele não tinha preparado discurso algum, mas, como via que os marxistas falariam, resolveu imitá-los e também se inscreveu para deixar seu recado. Não há nada que seja tão perigoso quanto tomar um inimigo por modelo, mas foi exatamente o que esse cidadão corajoso fez. Depois de argumentar como um jurista competente, embora seja só um estudante de medicina, ele teve que escapar de mais um jumento alado. Uma senhora, depois de ouvir argumentos a favor da família, que lhe soaram à velharia, exortou-o ironicamente a respeitar os anciãos que, como ela, eram a favor da transversalidade. Há um mistério nessa palavra, pronunciada bruscamente, cortando a linha reta que ligaria a terra ao céu.

Uma transversalidade chama a outra e quanto mais, melhor. A outra em questão, que complementa a igualdade horizontal, é a laicidade vertical. Não é simplesmente arrancar o crucifixo e substituí-lo por qualquer outro sinal mais vago e menos histórico. A transversalidade não vale nada se ela significa uma confusão sentimental em que não há hierarquia alguma. Ou seja, ou os mais fracos são identificados e cuidados contra toda tentativa de esquecê-los numa busca idiota do prazer, ou o qualquer tentativa de inclusão social é papo furado.

A identificação preventiva da vítima se dá através de um processo de objetivação. Não se trata somente da criança solitária e indefesa, mas sim de um prejuízo para o bem público, que, no jardim da modernidade, é a flor mais mimosa de todas. Trata-se, evidentemente, da democracia, cujo fundamento é uma retórica filosófica e, portanto, antissofística. Fere o princípio da não-contradição que alguém use, num debate dentro de uma casa pública, um discurso ambíguo, valendo-se das suas verdadeiramente veneráveis cãs a favor de um pseudoprogresso contra a virtude. Se a transversalidade da jovenzinha com cabelo branco tivesse cruzado o caminho de uma espada, o caos teria se instaurado.

sábado, 28 de maio de 2016

O Preço do Gosto



A Arcádia era uma terra muito longínqua, onde os pastores, que nunca precisaram da civilização, moravam. Nela, não havia espadas, nem arado, nem a experiência de qualquer conflito. Todos cuidavam de suas ovelhas. Como, porém, a monotonia delas cansasse algum racionalista de antanho, foi necessário que se inventasse a flauta como distração. Este foi o começo de uma tragédia, porque se antes as relações eram simples -  os frutos eram colhidos das árvores e a carne era fornecida pelos animais -, agora o doce instrumento precisava ter um preço. A partir daí surgiu a cidade, em que não há só pessoas, mas também a compensação do comércio. Quem tocou a flauta quis receber um um salário, que, todavia, não é sempre necessário.

No governo, de fato, o princípio da compensação é aplicado de maneira diferente. Se um carpinteiro não produz nada, ele não tem o que compensar. Um presidente, por outro lado, se é prudente, ainda que não faça nada de concreto, merece alguma contrapartida. Além disso, o princípio opera não só na remuneração dos vereadores e quejandos, mas também na sucessão do governo. Ter o poder é algo que, por imitação, todos desejam, mas ele se torna ineficaz se não há quem obedeça. Portanto, o melhor é que todos, em algum momento, ditem os rumos da sociedade.  O pré-requisito é que estejam dispostos a sacrificar os seus interesses. Do contrário, a cidade se transformaria numa oligarquia ou mesmo numa tirania.

Nosso poder, no nível animal, manifestava-se na posse de um território dividido entre todos e não mudou muito. O interessante, porém, é que a coisa comum nem sempre é útil. Os macacos, por exemplo, dividem não só a área onde vivem, mas também a árvore onde tacam as pedras, o que talvez seja um hábito hereditário de algum sacrifício pacificador. Esse bode expiatório, que seria simbólico se houvesse referencialidade múltipla, também é uma espécie de compensação, porque vítima igual ao agressor desaparece do plano fático, uma ausência particularmente louvável. 

O princípio da compensação, portanto, pode ser definido como a origem do processo de diferenciação do trabalho em várias guildas. Se há um registro público, também é necessário que haja quem o leia e informe algum herói capaz de agir e que haja quem obedeça. Há, no entanto, um ponto em que a analogia, passando pela  memória, a vontade e a decisão, não pode ir adiante. O bombeamento do sangue, que distribui oxigênio, não pode ser realizado somente por quem detém o poder. Do contrário, se o espírito soprado desde o Ministério da Educação for um veneno, a unidade pode até existir, mas ela não vale nada. É necessário que haja financiamento privado de fundações para que o totalitarismo não tenha chance e para que a cultura geral, requisito básico para qualquer tarefa que não seja esfregar o chão, seja difundida sem muito viés ideológico.

Até aqui, não há a menor necessidade de dinheiro, já que para fazer um intelectual trabalhar basta uma cerveja. O salário só é indispensável na medida em que a liberdade é possível. Se todos os produtos são iguais, não há por quê ficar perplexo entre um sabonete Dove e um Monange, cujas diferenças reais ninguém sabe. O salário, no entanto, é um meio de evitar a semelhança de desejos que, se muito intensa, gera um certo desconforto. A coisa fica clara ao considerarmos a variação das arquiteturas. Um bem espalhado por toda a sociedade deixa de ser atraente. Surge, então, a necessidade de compensar a sua falta por um algo diferente, o que só é possível se houver a liberdade subcriativa e o correspondente financiamento. O capitalismo é o preço insubstituível do gosto.  

domingo, 22 de maio de 2016

Uma Pérola no Chiqueiro



Eu nunca tinha visto Edmundo, o justo. No entanto, uma pessoa muito brincalhona contou uma vez que ele, estando no Rio de Janeiro, começou a explicar a arquitetura das igrejas da Praça Quinze. Edmundo era o guia de uma excursão em que só havia adolescentes. Depois de fazer doutas distinções em alta voz olhando fixamente para uma imagem e terminar com uma piada, ele percebeu que ninguém havia rido. Ah, pobre justo! Aconteceu de nenhuma gargalhada soar porque nenhum ouvido escutou. A garotada havia ficada parada contemplando, embasbacada, um carro tunado que, todo vermelho, rebaixado e moderno, destoava no meio da tradição do lugar.
Consolar um justo não é tarefa para qualquer um. No entanto, é possível que ele, enquanto voava para o passado, tivesse se esquecido que muitos outros doutos expositores das belezas atemporais também tinham ficado sem público. Ele certamente afirmaria que com ele é diferente porque a sua audiência era selecionada. No entanto, ninguém era tão selecionado quanto a corte do Rio de Janeiro, que, a não muitos passos dali, assistiu ao imperador que declarava ficar nessas terras. E alguém duvida, porém, que, naquele momento histórico, um pedestre estivesse com a cabeça nas nuvens, pensando em algum parente longínquo que o iria visitar ou em algum time esplêndido que foi roubado pelo juiz?
As lembranças, de fato, têm vida própria. Um fantasma que, desmistificado há muitos séculos, teima em voltar é o duende. Mas seu nome mudou, e o nome é tudo. Seu novo apelativo é agora energia, que pode ser atraída por um prisma ou repelida pelo pessimismo que muitas vezes é a realidade sem o eufemismo da retórica.  O imaginário moderno, assim, já não comporta um ser que, no jardim da minha tia, aparecia com a forma de um anão. Os duendes de hoje são algo tão abstrato quanto o ser, mas não tão fidedigno. A última moda é a Ideia.

Alguém que se apresentasse como o salvador da pátria faria uma paródia sem graça. Uma declaração de boas intenções pode muito bem ser uma das daquelas cartas ridículas sem as quais a humanidade não continuaria existindo. No entanto, quando um presidenciável como José Serra aparece na televisão para tranquilizar o povo brasileiro dizendo que, a partir de agora, o princípio pelo qual se pauta a política é a Nação, há algo de errado. Esse discurso soa como uma música solene que envolve em mistério uma coisa muito simples: o governo. Traduzindo em miúdos, José Serra promete deixar-se levar pelo que os técnicos lhe digam que é mais eficaz para a economia do país, sem deixar que seus interesses partidários prejudiquem os investimentos.

O problema com o livre mercado, no entanto, é que ele é de fato uma feira pública, onde jovens incautos deixam-se levar por qualquer produto barato. Se houvesse algo de novo no país, José Serra teria mencionado em que consiste precisamente o rumo a ser tomado. A posição do novo governo sobre os temas fundamentais não foi divulgada, porque ainda esperam por um consenso que nunca existirá. Eu gostaria de estar errado, mas é isso mesmo. No entanto, Edmundo, o justo, insiste em que o ministro merece um voto de confiança, porque, na sua fala, brilha como uma pérola escondida a palavra valor. E que a galera, quando ouve isso, não pensa só no preço de um automóvel.

domingo, 10 de abril de 2016

O Chá de Napoleão Democrata




Há muito papo-furado quando o assunto é o exército. Não há dúvida de que a força, por si só, não é um argumento, mas a estratégia militar se desenvolve nesse nível. Um dos pontos básicos dessa coisa é o de que, quando o soldado inimigo é capturado, não há mais nada a fazer. Napoleão, se não tivesse bem delimitado o que era a guerra, poderia ter destruído todos os camponeses. No entanto, se ele não o fez, é porque entendia que há uma diferença entre o ódio teórico, que é recomendável, e o prático, que convém sempre adiar. Não se deve tocar nem nas crianças nem nas mulheres a não ser para protegê-las. Quando invadidos, os russos, por sua vez, colocaram em prática a opinião metafísica de que a entrega é melhor maneira de se vencer. Se o intelectual põe fogo em tudo o que na sua vida é incompatível com o bem, não há dúvida de que, cedo ou tarde, a vitória será sua. O feminismo é um campo onde essa tática é particularmente eficaz, o que fica claro na história do chá.

Antes do século XVI, o chá era desconhecido na Inglaterra. Ele era cultivado na China, onde os homens o provaram e acharam que era leve o suficiente para ser uma bebida nobre. De fato, assim como o fumo, ele é algo que pode ser consumido antes e depois de qualquer refeição sem prejudicar o apetite, o que é conveniente para aqueles cujo ofício é gerenciar o trabalho alheio em reuniões longas. Aqueles que, mais embaixo na pirâmide, passavam a vida ao ar livre não se dignavam a distrair-se com beberagens de pouco valor nutritivo. Uma das primeiras cortes europeias que recebeu o produto oriental foi Portugal, onde, porém, ele foi somente uma moda passageira.

Alguns dizem que alguma resistência foi oposta. Antes mesmo de ser provado, ele chocaria as sensibilidades no seu novo ambiente, por conta de uma associação imaginativa ao ópio, um produto alucinógeno. No entanto, o boato de que ele prejudicaria a consciência só poderia ser aceito por aqueles que nunca ficaram levemente embriagados. Qualquer um que já sentiu a alegria do vinho sabe que é perfeitamente possível identificar uma alteração das percepções. Se, portanto, ao factoide da lombra do chá fosse acrescentado o juízo de que ninguém poderia saber se sonhava ou estava acordado, prová-lo seria uma temeridade. No entanto, não consta que o pessoal fosse ao mesmo tempo tão inimigo do álcool e tão crente no platonismo de quinta categoria segundo o qual o mundo é representação total.  Talvez fosse assim, mas seria preciso averiguar com mais cuidado antes de se divulgar uma opinião tão problemática. Platão ensinava que o mundo inteiro é uma representação somente enquanto dormimos.

O mais provável é que a demora para que o costume pegasse se devesse à novidade. No entanto, como foi adotado pela dieta dos grandes, o exemplo fez com que o chá se espalhasse. Catarina II de Portugal havia se casado com Carlos II da Inglaterra e levara consigo o hábito de bebericar o líquido para os palácios frequentados por seu marido. Uma questão interessante é por que a acolhida no país de Nelson foi maior do que na terra de Cabral. Talvez tenha sido que, no segundo, não havia uma bebida que fosse tão típica quanto o vinho no primeiro. Na Inglaterra, o chá preencheu um vácuo gastronômico que não existia em outras regiões.

No século XVIII, várias famílias bretãs alcançavam um melhor nível de vida com casas onde se vendia o requisito essencial para o chá das cinco. Entre os homens, porém, o costume de se reunir ao redor de um bule não era tão forte quanto entre as mulheres. De fato, quem já tinha a cerveja não precisava do néctar do oriente. As senhoritas, por outro lado, além do gosto, tinham uma razão ideológica para se reunir. As sufragistas, buscando que o direito de voto também se estendesse às saias, maquinavam as suas ações afirmativas entre um gole e outro. O chá era um símbolo da emancipação feminina. No entanto, ele não se resumia a isso, mas também era a ocasião de descanso em meio ao trabalho. No século XIX, de fato, reza a lenda que os empregadores da Inglaterra eram obrigados a conceder a todos os seus subordinados uma pausa diária para a conversa em meio aos aromas que um dia haviam sido estranhos e agora perfumavam os escritórios e as fábricas. 

Nesses intervalos e em outros, é muito possível que questão da finalidade do estado tenha surgido. Este ente imaginário, no entanto, não tem função alguma, mas serve somente para esconder quem detém o poder. O trabalho sujo de se meter nesses assuntos partidários tinha sempre cabido ao homem. No entanto, se as mulheres queriam dividir com eles ambos os fardos, não havia problema teórico algum. E mais: se, com esses novos deveres femininos, o cuidado da casa não ficava tão bem atendido quanto antes, o governo ganhava uma voz doce sobre um problema que a própria entrada das mulheres na vida pública havia criado: a educação dos filhos teria que ser terceirizada a particulares ou ao creches públicas. A hierarquia, no entanto, é ao contrário.
Vamos supor que exista uma república do chá. A aristocracia dessa cidade hipotética cuida para que não haja nenhum praga ou invasão inimiga que destrua as plantações e tenta melhorar a qualidade dos grãos. Abaixo deles estão os donos das terras onde o principal produto econômico é produzido. Eles, no entanto, não são em número suficiente para arar a terra, plantar as sementes e colhê-las. É imprescindível, então, que haja também empregados que façam esse e outros trabalhos. Todas essas funções são específicas e desempenhadas por homens. No entanto, nada impede que as mulheres sejam fortes o bastante. O que, porém, a modernidade fluida decreta do alto de suas cátedras é que não existe especialização dos papéis sociais, o que acabaria com qualquer feminismo. 

Como se não bastasse esse despropósito, a ideologia do gênero elimina a única coisa concreta digna do apreço geral: o bom senso aprendido através da mãe. Está aberta a porta para a tecnocracia, onde, embora se produzam muitas bebidas aguadas, ninguém mais trama revolução alguma contra os crimes legalizados. Seria, de fato, uma experiência interessante - e não só para o Sr. Fachin do STF– se cada município tivesse a liberdade para ser radical a favor da vida e da família. Isso, na longa fila das infinitas e justas reclamações femininas, é anterior ao direito ao voto. O estado é o lugar onde Napoleão se sente em casa, mas a mulher dele, com certeza, teria preferido passar a vida toda em Santa Helena.

sábado, 2 de abril de 2016

Falácia da Parabólica



O presidente da república tem foro privilegiado no STF se o crime for comum e no Senado se for de responsabilidade. Em 1992, houve uma tentativa frustrada de submeter os altos dignatários acusados de homicídios e roubos também ao Senado Federal. Dentre os sempre diversos pareceres sobre tema, no entanto, a opinião mais douta era a de que os delitos eventualmente cometidos pelo chefe do poder executivo continuavam sendo de duas naturezas: comum ou de responsabilidade. O chefe da nação também tem vida privada. E é assim até hoje. Matar, portanto, não explicaria juridicamente o impedimento. A diferença entre os dois tipos está no elemento político. Tirar a vida de alguém é um crime comum, que não necessariamente interessa ao rumo geral da nação, e não deve assim também ser julgado pelo poder de Sarney e companhia.

Que o juízo de admissibilidade dependa do legislativo mostra que a política deliberativa  é superior à técnica dos advogados, e que, portanto, Aristóteles estava correto. A instauração de qualquer processo requer, de fato,  dois terços da câmara dos deputados. No entanto, como não há diferença entre os dois tipos de processos, por crime comum ou por crime de responsabilidade, a bipartição das naturezas fica comprometida. Essa diferença legal, no entanto, também se submete a uma razão política. Se o presidente da república tivesse cometido um crime jurídico em nome do bem comum, não haveria como condená-lo. Com efeito, Maquiavel, que não era bobo, dizia que, se a república está em jogo, os fins justificam os meios. No entanto, nem sempre é assim.

Há bens que tem razão de fim. Toda a sociedade está ordenada a produção de riquezas. Não há dúvida de que, economicamente, é melhor o consumo do que a estagnação. No entanto, há várias coisas que não tem preço, a primeira das quais, numa democracia, é a honra do povo. Estar submetido a um chefe de governo disposto a negociar o Brasil em troca de mais parabólicas é inadmissível.

domingo, 27 de março de 2016

A Soberania Impossível do Alface e de Outras Irrelevâncias


Trazer à baila a repetição de um argumento ao longo de toda a história mostra que vários tiveram uma mesma convicção inabalável. Ao contrário do que julga o Evolucionista Ideal, não se trata de um preconceito psicológico comum,  mas sim de um juízo indispensável à natureza da cidade. Por outro lado, há opiniões inovadoras como a de que o acaso é a força que provê a matéria da seleção. O elemento comum entre o boato corriqueiro e a descoberta científica não é outra coisa que o mistério das incertezas. Porém, desde que a matemática tomou o lugar das humanidades, nenhuma segurança é possível fora da economia, o que destrói o orçamento do Ministério da Educação. De fato, não há dúvida de que investir na infraestrutura necessária às indústrias é algo mais promissor do que atribuir recursos à busca desinteressada pela verdade.

Uma certeza, no entanto, é sempre incompatível com as demais. O boxe, a propósito, é fundado nesse princípio. E, ao mesmo tempo, é uma demonstração de que ele é a glória da regra. Há várias maneiras espetaculares de derrubar o adversário. Dar-lhe, no entanto, uma cotovelada enquanto ele está caído no chão seria um crime. Uma sociedade, todavia, em que o progresso científico é a única verdade não permite nenhum esporte saudável. Qualquer objeção baseada na filosofia aristotélica é vista como algo retrógrado, que, ao invés de levar adiante, empurra para trás. O acúmulo de dados físicos é o primeiro passo para a burrice, ainda que elas sejam atestadas por Pasteur e outros nomes não tão respeitáveis. O segundo é delegar o pensamento ao consenso. O terceiro é querer refutar Descartes no seu extremamente ordenado campo de batalha.

Depois desse Filósofo, o progresso nada mais é do que um acúmulo de contas concretas, o que não traz consigo necessariamente o lapidar imprescindível da imaginação. O homem ou é um ser deslocado no mundo como um extraterrestre ou é um imperador cuja púrpura foi surrupiada. As duas concepções são bem parecidas, com a diferença de que, na segunda, há um delito primordial. A teoria da antropogênese do efeito estufa é compatível com ambas as hipóteses. O seu silêncio quanto ao furto, no entanto, embora falso, é uma cotovelada indevida, porque coloca o João da Esquina na posição de réu por um delito que ele não cometeu. Sempre é possível dizer que o Evolucionista Ideal não é o culpado pelo aquecimento global, embora o seja pela morte de uma multidão de vegetais indefesos. Isso, porém, seria pressupor uma consciência que, cientificamente, tem tanta entidade quanto a estratégia bélica de Chamberlain.

A felicidade do vegetarianismo depende da metafísica rigorosa segundo a qual a responsabilização é exclusivamente individual. O fato óbvio, porém, é que, se é impossível fazer um omelete sem quebrar um ovo, quanto menos um banquete. É impraticável adaptar-se sem dominar o meio, e isso faz com que seja imprescindível carregar pedras, esforço para o qual o alface não provê a quantidade indispensável de calorias. Sem dúvida, o avião que passa como um pombo da paz sobre milhões de cabeças indefesas teria sido inventado mesmo se as sinapses de Santos Dumont fossem estimuladas somente por alfafa. O que, porém, ele comia ou deixava de comer não é importante, porque são atos particulares.

Isso é um desvio político que qualquer cidadão tem o dever de denunciar.  Se os discursos parlamentares visam mais às leis sobre questiúnculas do que à soberania, o país está fadado ao fracasso. Há, no entanto, algo que é ainda mais urgente do que a autonomia. Se alcançasse o palanque um grupo que, por falta de uma palavreado decente, apelasse para as baixarias do baixo ventre, os amigos de Fernando Haddad teriam a reputação ilibada da toga. Como isso não convence ninguém, o próximo meio é usar a violência, expediente em que os senhores do baixo clero não insistem mais porque o alto clero ainda têm paciência o suficiente para dedicar-lhes a imprescindível conversa fiada. O liberalismo desenfreado, de fato, é a causa do terror. E se, por acaso, alguém ainda achar que tratar de procriação é um privilégio inexistente dos fiscais de alcova, aí vai mais uma razão gráfica.

Camões, como se não bastasse ser poeta, era também um herói militar, isto é, alguém que arriscava a vida pela pátria. Mesmo, no entanto, sendo um exemplo de civismo, ele arrumava tempo para cantar as loas de de uma musa que poderia muito bem estar presente por seus passeios públicos por Lisboa. Ele, no entanto, deixava-a em casa cozinhando e se retirava para alçar a sua lira às alturas épicas. E reclamava como poucos do mundo inteiro, que estava entre ele e sua amada. Ainda que seja muito belo, isso não é discurso parlamentar. Se os hábitos privados são esfriados pela sua exposição pública, a infecundidade toma o lugar das famílias. O próximo não é um sonho, mas sim um pesadelo já planejado e executado. As armas tomam o lugar da retórica, e a paz é derrubada junto com as torres da liberdade.

domingo, 20 de março de 2016

O Milagre do Trem

O Professor Gerardo Furtado  tem duas opiniões acerca desse costume imemorial que é a conversa fiada. A primeira é que ela apenas manifesta o quão precário sempre foi o raciocínio humano. A segunda é que, como um bate-papo não admite argumentos de autoridade, o seu aumento à medida que o tempo passa levaria a uma maior confusão, que por sua vez traria consigo o emburrecimento de trocar o fato pelo achismo, e esse efeito se acumularia de geração em geração. É um ponto de vista um pouco estrábico. No entanto, valendo-se do poder do criador sobre as criaturas, ele interpreta as suas palavras e se adianta a dizer que seus dois olhos visam mesmo a um só foco. Assim, cabe a nós entender a unidade do oráculo gerardiano e desvendar o mistério de como a conversa fiada não deixa e talvez deixe a galera mais estúpida. Para Otto Lara Resende, um infatigável praticante do esporte na modalidade epistolar, jogar conversa fora era uma forma de literatura. De fato, um de seus destinatários atestava: “os amigos que tiveram o privilégio de receber as suas cartas julgam que o melhor do Otto estava na incontinência do espírito do missivista tanto quanto no fulgor da palavra e na comunicação direta desse que foi quem melhor soube conversar no país e no seu tempo.” Não que se propusesse isso como um fim imediato, mas a coisa se desenvolvia de tal modo que, para dizer o que queria, ele utilizava recursos que a musa só franqueia aos valentes que, assim, são alçados quase a contragosto ao estado da arte. O ponto decisivo, assim, é saber se a literatura - isto é, a experiência transformada em ficção - não contribui para o descobrimento de verdades tão verdadeiras quanto aquelas que o Prof. Gerardo descobre no seu Pasteur e quejandos. A evolução, embora doutos julguem ser uma dessas iluminações, é um disparate mais inverificável que todas as estórias de fantasmas juntas e, portanto, não pode ser a pedra-de-toque da questão. Da mesma maneira, a infinitude do universo é uma elucubração tão gigantesca que tampouco serve. Resta-nos ficar com algo que ninguém duvida ser muito científico e averiguar se ele tem alguma relação com a literatura: o método. Essa mania acadêmica, sem a qual qualquer cientista passaria muito má impressão, nada mais é do que uma tentativa ordenada de verificar uma hipótese. Dessa maneira, se alguém dentre os antigos tivesse a ousadia de não fazer nada e conjecturar que a terra é esférica, ele poderia sair por aí divulgando a sua informação e exigindo que as pessoas acreditassem na sua autoridade. Alguém, porém, sempre pode duvidar. Então, ele poderia mostrar, na lua, o corte arredondado. Se o que produzia a imagem era o nosso planeta, não haveria incertezas de que a razão estava com ele. O método ou caminho que o levou a tese poderia ser replicado por qualquer um, o que daria foros de consenso à sua opinião. Tudo isso, todavia, depende da suspicácia, uma faculdade que Otto, como bom mineiro, trazia do berço. Ciência, com efeito, é uma certa observação ativa do real. E para que dê algum resultado é necessário que se proponha a responder a uma pergunta bem delimitada. Isso, porém, não é possível se o que predomina é a ingenuidade de achar que tudo é assim ou assado porque é o que parece. Suspeitar, no entanto, que as aparências enganam é um expediente da imaginação. Otto, por exemplo, estando hospedado numa pensão belga, desconfiou que o líquido vendido dentro de uma garrafa de água mineral potável fosse, na verdade, tirada de um bica improvisada que, por um momento, só existiu na sua cabeça. Ele, então, marcou o frasco para verificar se, da próxima vez, seria o mesmo. Assim a pulga atrás da orelha seria confirmada, e surgiria a segurança de que o dono do estabelecimento ganharia dinheiro à força de passar a perna nos clientes. Se isso não é, exatamente, o que um biólogo faz em seu laboratório, há uma semelhança inegável. Ambos, munidos de um palpite, tem que arrumar um meio de constatar a sua procedência. Existe, todavia, algo que é superior à ciência, embora não tenha o atributo divino da verificação laboratorial. Quando, num acidente ferroviário que aconteceu próximo de Barra do Piraí, vários passageiros morreram, mas Otto sobreviveu, ele não diz expressamente que isso foi por milagre. Os mineiros, por um excesso de prudência campesina, desconfiam que o acaso também possa existir. No entanto, ele deixa consignado que invocou a Virgem Maria. Que a vida humana não dependa de Deus, mas só da precariedade de invenções como esses e outros sistemas de transporte é algo tão exageradamente trágico que qualquer um afirmaria ser essa hipótese tão real quanto um sonho ruim. No entanto, alguns adoradores cegos da Nature imaginam isso e acham estar com a verdade só porque não estudaram filosofia o suficiente para discernir onde começa e termina a autoridade dos colegas do Professor Gerardo. Ela começa e termina no trem descarrilhado, e é tão certa e segura quanto uma caveira.









terça-feira, 15 de março de 2016

A Beleza do Faustão


A festa da democracia ainda nem começou, mas os preparativos são promissores. O ex-presidente Lula disse que só saía de sua casa algemado, como qualquer outro meliante. Como, porém, esse tipo de passeio não orna a reputação de ninguém, alguns poucos petistas foram às ruas para demonstrar a sua adesão inquebrantável ao anjo caído. E, numa de suas investidas, invadiram uma propriedade da família Marinho que está no nome de um estrangeiro. Eles teriam, mais uma vez, desmascarado a Rede Globo. Não haveria diferença entre conglomerado televisivo e aquele que, como economista, é um bom metalúrgico. Isso, obviamente, é papo-furado. A empresa carioca, no entanto, tampouco é uma vítima inocente.

Ela mesmo admite já ter feito das suas ao apoiar o regime militar. No entanto, o delito cometido pela Rede Globo não é o ter defenestrado os marxistas e afins, mas sim o mesmo em que incidem, quotidianamente, milhares de brasileiros. Um membro dessa preciosa raça acontece de tossir ao ar livre, no meio da rua, num dia em que o vento é impetuoso. Ninguém o recrimina de nada, mas, se alguém ameaça fazer cara feia, ele pede desculpas. Quando, porém, essas delicadezas passam a ser demasiado oficiosas, algo maior não vai bem. Se a Rede Globo sente muito por ter apoiado a revolução de 1964, o melhor seria esclarecer que, naquela conjuntura, não podia fazer mais. Não é uma bela ação, mas seria pior ainda a omissão. A grande confusão seria achar que, por alguém ter pedido desculpas por algo inocente, ele deveria estar arrependido do ato em si. Pedir desculpas por tossir, porém, não chega a ser um delito, mas somente uma má-compreensão da etiqueta. O crime da família Marinho é o que está por detrás dessa aparente questão menor.

Assim como acontece com a casa invadida, parte do apartamento usado por Lula tem como proprietário um terceiro. Isso, por si só, significa uma simulação, que, no entanto, é inócua tanto quando realizada pelo líder petista como quando feita pelos barões de Jacarepaguá. Porém, ao contrário do que acontece na esfera privada, a simulação governista é um indício de que o dinheiro para comprar as propriedades vieram de algum meio que seria politicamente incorreto admitir. É bastante diferente do que acontece com a TV Globo. Os petistas gostariam de passar uma imagem de honestidade, e a empresa midiática, há já alguns anos, esforça-se para ser conhecida pela sua sem-vergonhice. Há algo mais indecoroso do que vender a intimidade de uns coitados cujo único talento é a mediocridade de não ter nada para oferecer ao público além da indecência? O ato nefando da TV Globo é este: ela inverteu o pudor. É vergonhoso lucrar com a privacidade alheia, mas ninguém em sã consciência se envergonharia de possibilitar a festa que a ditadura do proletariado teria impedido.


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

A Contabilidade Capilar

Ai dos doentes! Porque a medicina sozinha não pode salvá-los!! Antes de mais nada, o maior problema é achar o mundo sério como uma aporia. Os médicos, porém, também são pacientes porque padecem de uma grave falta de bom-senso. É errado achar que o o homem precisa, como um computador, de energia para funcionar. Um médico de um prestigioso hospital, que fica ao lado do Palácio da Mooca, é magro como um palito. Ele não tem tempo para jogar conversa fora porque todo ele se concentra num só traço vertical, sem possibilidade de se expandir como um horizonte onde o sol se põe. Para ele, tudo é uma longa noite,  em que só brilha, lá longe, a luz da saúde. Todos estão doentes até que se prove contrário. Nesse estado de espírito, ele vai até o quarto do senhor Marcelo Bezerra e Bezerra, e o seguinte diálogo acontece:
- Olá, seu Marcelo!! Tenho o palpite de que você tem muita dor na perna. Acertei?
- Doutor, eu já lhe disse que estou bem, pronto para ir embora.
- Mas e os rins: funcionam direito?
- Sim, nenhum problema.
- Mas o senhor deve pelo menos ter tossido bastante…
- Meus pulmões estão ótimos.
- E por quê, então, o senhor está com a cara feia?
- Muito simples, doutor: desde que cheguei aqui, a minha única atividade tem sido contar, quando acordo, os fios de cabelo que ficam no travesseiro. Eu não aceito isso!! E mais:  se estou entediado, a culpa é do hospital, que não me libera!
O médico, desconfiado de que o paciente tenta engabelá-lo, vai embora e não lhe dá alta. Bezerra-e-Bezerra é declarado doente porque ainda não descobriram a sua doença. Embora não seja perito na disciplina de Esculápio, ouso afirmar ser  fato que a perturbação do nosso amigo se deve à língua presa quando o assunto é a dor.  No entanto, o médico não compreende algo que os manuais da faculdade deixaram de ensinar.  Ele está doente porque há dias não conversa sobre nada que não seja a própria ruína, e ele precisa de outros temas como a malícia dos políticos.  Se ele saísse, ficaria melhor. Há, de fato,  algo simplório sobre a personalidade de Marcelo Bezerra e Bezerra que os doutores teimam em não aceitar. Ele não quer enganar ninguém, nem se nega a receber o tratamento. Ele só gostaria de exercitar  aquela arte que anda esquecida desde que a piada foi tornada oficial e, portanto, chata. Ele quer reclamar.

Sim, desde que os cabelos começaram a se despedir da cabeça de Bezerra e Bezerra, ele não está para ditos engraçadinhos. Ele gosta de posar de sério e não deixa de elaborar um discurso em consonância com a sua tragédia capilar. “A salvação do mundo depende de uma melhora do nível de moralidade, que está abaixo como estava a represa de Guarapiranga e não há chuva que dê jeito!”, ele repete para si mesmo e para quem é temerário o suficiente para cruzar o seu caminho. Ao mesmo tempo, porém, ele tem uma particular afeição pela injustiça dos outros, porque,  sem ela, ele não seria a vítima cósmica. Ele poderia até se vingar, mas diz para si mesmo que isso seria grosseiro.  Em última instância, porém, a visão predominante é a de que os deuses o invejam porque ele se mantém incólume no meio de um mar de iniquidade. E nada, de fato,  é tão belo quanto um homem pelagiano, sem culpa, que atrai sobre si a ira do mundo inteiro.  Bezerra e Bezerra é um trágico que, ah!!, chegou atrasado!

Ele, porém, ainda não assumiu a sua calvície, sem a qual a sua querida desgraça não teria começado. A Tuba – cuja função social é tornar feliz qualquer imprudente que resolva perder tempo com ela, seja ele quem for - fornece um remédio pagão para uma doença pagã. A arte da tragédia nada mais é do que saber esperar passar o triste canto das sereias.  A propaganda em questão é o blá-blá-blá segundo o qual as pessoas se importariam mais com a juba do que com quem Bezerra e Bezerra é. Nessa matéria, não há ninguém tão hábil quanto Ulisses. O herói homérico foi cantado não só pelos gregos, mas também por um surfista carioca muito tranquilo, que é um discípulo moderno de Alberto Caeiro. De posse de um manuscrito que lhe chegou numa das ondas, ele verteu livremente para sua língua a tristeza moderada de Ulisses, que o levou não à loucura de agir, mas, muito pelo contrário, a ficar parado por algum tempo na rota traçada antes que a fúria dos elementos despencasse sobre a embarcação indefesa.


Os Cabelos Que Ficaram Para Trás 
A linha entre o ser feio e ser gozado
É uma diferença bem pequena
Que eu descobri uma vez, já cansado,
Nas doces areias de Saquarema.

O grande esforço, já extenuado,
De pescadores sem nenhum problema
Que não se resolva pelo que é dado
Pelo mar, sem carência de esquema,

Encontrou um tesouro na areia
Como um prêmio-extra por seu trabalho:
Eram jóias… que o tempo tornou feias.

- Há algo belo que seja perdoado?-
Perguntei. E o vento, na minha orelha:
- Ítaca! Onde a calvície é passado.

sábado, 23 de janeiro de 2016

A Frieza das Mulheres

A cordialidade brasileira não é sentimentalismo. Ela é antes de mais nada a capacidade de dialogar mesmo quando o navio está a ponto de naufragar, e um brasileiro de verdade não deixa de ceder o seu lugar no bote que salvaria a sua vida por conta do medo de que o resgaste não iria chegar. O verde da bandeira tupiniquim é a sua esperança, que só morre quando o dinheiro fala mais alto. É a triste história de Lula, que deixou de servir aos pobres quando o verde dos dólares da Odebrecht subornaram a sua consciência. O segundo fundamento da honestidade é não se achar o honesto, porque o primeiro é a razão, coisa que está em falta mesmo em figuras ilustres como os professores da Botucatóvisque, aquela faculdade que, entre nós, é dona do prestígio que foi de fato perdido na noite dos tempos. 
Um de seus professores um dia me confidenciou que o sentimentalismo o deixava apavorado. O medo, obviamente, é pior do que o próprio sentimentalismo. A melhor reação contra essa doce falha não é encolher-se, mas sim desbragadamente assumi-la. Sentimento é bom, e eu gosto. Isso é subjetivamente verdadeiro porque foi um fato que a consciência manifesta com a clareza que permitia a Narciso estranhar a sua face no lago. A diferença entre homens e mulheres é que os primeiros se apaixonam pela imagem, enquanto as segundas não se apaixonam por nada. A sociabilidade é algo comum entre os dois sexos, mas a proverbial fragilidade feminina é uma máscara que esconde o seu coração de gelo ou, na gíria filosófica, a sua diferença específica. 
Tomarei da vida um exemplo politicamente incorreto, mas sincero. Nem o mineiro, nem o carioca, nem o paulista, nem ninguém é tão macho quanto o cearense, esse bravo que suporta a seca com um estoicismo mais forte que o de Zenão. Isso é sinal de varonilidade porque é próprio do homem se empolgar com a própria força. Não há dúvida, porém, de que o melhor para o cearense é deixar de ser cearense e ir, como uma mulherzinha, a Brasília implorar que, em vez de planos mirabolantes como a transposição do São Francisco, recorram à simplicidade da água das cisternas. Ou seja, a dor da seca só é vencida se se faz uma gritaria em torno dela. Mas, para isso, é necessário uma paixão transparente e equilibrada como num soneto de Camões.  
Mulheres, pelo contrário, quase não escrevem poemas de amor. Essa frieza é ao mesmo tempo a sua glória e sua ruína. Se as amadas respondessem às cartas dos amantes, não só as epístolas deixariam de ser ridículas como o próprio sentimento desapareceria. O amor feminino não é a contrapartida do masculino porque as mulheres são mais racionais do que os homens. Se Helena fosse uma mulher de carne e osso, ela não seria capaz de ter atraído Menelau. Foi só quando ela se apaixonou pela própria imagem que Troia ruiu. Uma mulher de verdade é como um beija-flor que paira acima dos sentimentos vulgares não porque tenha medo deles, mas sim porque a sua razão lhe diz que a transformação da beleza ordinária na permanência do casamento só ocorre se os homens forem também suficientemente calculistas para reconhecerem que o frio na barriga do primeiro encontro não dura senão à força de comprar muitas flores e descobrir outros meios menos óbvios.