segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Uma Vitória Passageira dos Bárbaros


Nós começamos com os bárbaros e vamos acabar com eles. No entanto, ainda não foi dessa vez. André Baco, um dos colaboradores da Tuba, achando-se douto o suficiente para se tornar um, digamos, mestre quando o assunto é a originalidade em Plauto, como ninguém lhe havia dito nada em sentido contrário, foi em frente e desafiou a Maior Autoridade para um debate de alto nível. Ele, de fato, havia dito na banca de qualificação que havia dois elementos da comédia plautina. O primeiro é grego, e o outro é romano. Como, no entanto, é impossível ter certeza física sobre de onde saiu cada um dos versos, o jeito era analisar o estilo e, principalmente, as referências. Se, por exemplo, há uma menção à justiça, é bastante razoável que a coisa seja romana, já que os gregos tanto não tinham preocupação com a equidade que não produziram nada parecido com o direito romano. O mesmo acontece se há uma menção às saturnálias, uma festa religiosa do Lácio. Que essas e outras romanices destoavam do ideal da arte grega não é algo a ser desprezado.

No entanto, isso, além de ser a opinião de Fraenkel - uma Maior Autoridade Internacional já falecida - é o que não poderia ser: senso comum. Durante a banca de qualificação, de fato, o professor Alexandre Hasegawa - que, embora não tenha nada de sagrado, tampouco tem algo de vaca - avisou ao nosso amigo que a Academia não tinha nada a ver com senso comum, e que, portanto,  a referência dos conceitos deveria ser expressa. Isso faria, por exemplo, com que se soubesse se a imitação era platônica ou aristotélica. Como, todavia, não há diferença entre Aristóteles e Platão dentro do senso comum, o contribuinte da Tuba não seguiu essa recomendação, concentrando-se na análise da discurso. O professor Alexandre havia dito que as figuras de linguagem são importantes, ainda que sejam mera retórica. Portanto, foi necessário mostrar que a peça não é muito diferente de um argumento jurídico criativo, algo que o pessoal do filme Getúlio tentou em vão fazer. A diferença entre o fórum e o teatro é que, diante da plateia, não há a necessidade de base legal, e diante do juiz há um dever de clareza que não está presente na ficção. Uma alegoria, por exemplo, não cai bem no discurso de um advogado que quer se fazer entender, mas é a única saída para um dramaturgo que não podia se manifestar de outra maneira.

A Maior Autoridade, cujo nome não somos dignos de enunciar, não tinha nenhuma objeção contra o senso comum. Pelo contrário, tendo, desde o começo de sua carreira, evitado qualquer atrito com os seus colegas de Academia à força de acompanhar as modas metodológicas, ela sempre seguiu a platitude de que ficção é ficção, e qualquer relação com a realidade seria mera coincidência. Porque, uai, ninguém pode saber com certeza que Plauto entendia o que era verossimilhança. Assim, não haveria lugar para um estudo sobre um autor que, pasmem!, ousasse misturar história de Roma à arte dramática romana. No entanto, talvez a Maior Autoridade tolerantemente aceitasse essa interdisciplinariedade se não fossem algumas outras ousadias.

André, no entanto, não deseja a misericórdia da tolerância, mas sim a reciprocidade da justiça. Se ele, quando concordou com o que a Maior Autoridade dizia, não deixou de louvá-la por escrito, por que ela também não faz o mesmo? Pelo contrário, ela teima em se fazer de desentendida mesmo diante das maiores obviedades. O contribuinte da Tuba diz também que uma tradução deveria ser completamente fiel ao original quanto ao gênero e deveria diferir dele sempre que fosse necessário para tornar o que era claro ontem claro hoje. Se a Maior Autoridade tivesse falado contra isso e não contra algumas notas de rodapé ou a falta de ordem alfabética na bibliografia, André estaria satisfeito. Mas a tempestade fatal, que deixou o barco do André navegando sem rumo nesse mar sem margens da sabedoria, foi a objeção da cientificidade. Seria impossível conjecturar um possível erro na edição da Harvard. Emitir as próprias impressões, enfim, seria um crime segundo a concepção moderna de um mestrado bem feito.

E uma das impressões que não foi reconhecida como verdadeira era de que a Maior Autoridade está errada ao não aceitar como científico algo que, embora fora de moda, não foi refutado: a ideia simples, enunciada pelos próprios latinos contra seu interesse, de que os gregos, vencidos, venceram os romanos. O relativismo não permite aceitar ingenuamente a superioridade objetiva de outra civilização. É necessário ser crítico, desde que não seja contra o estado atual das humanidades. A Maior Autoridade reúne, pois, os atributos da vaca sagrada: a lentidão para entender um argumento novo e a consideração de sua pessoa como algo intocável. Ninguém, de fato, pode encostar um dedo em nenhum bem do ser humano, mas André, salvo engano, tem um bom cúmplice nesse delito contra a fama: o Cristo  que, quando mencionaram outro rei, chamou-o impetuosamente de uma raposa. De fato, não há nada tão desagradável quanto ver o seu povo à mercê dos sofistas. André quase chega a dar razão aos versos dionisíacos de Camões:

"Este povo que é meu, por quem derramo
 As lágrimas que em vão caídas vejo,
 Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,
 Sendo tu* tanto contra meu desejo!
 Por ele a ti rogando choro e bramo,
 E contra minha dita enfim pelejo.
 Ora pois, porque o amo é mal tratado,
 Quero-lhe querer mal... será guardado."

* O "tu", no texto original, refere-se a Júpiter. Podemos sem dúvida entendê-lo como uma mediação externa que se tornou interna.