segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O Retorno da Vaca


Há dois modos de entender o estágio da secularização contemporânea. Uma, de corte mais sociológico e jurídico, consiste no reconhecimento cada vez mais acentuado da autonomia dos entes temporais e numa diminuição da poder da Igreja nesses assuntos. A segunda, mais direta, é a transferência deliberada dos valores nascidos a partir do cristianismo para uma esfera filosófica imanente, que se pretende radicalmente alheia à qualquer religião. Não há nessa última ataque frontal contra a Igreja. Pelo contrário, há a admissão de que os valores cristãos são positivos mas, ao mesmo tempo, há o pressuposto de que o único possível é a diferença do que foi feito até agora. A diferenciação, no entanto, não é prescritiva, mas sim uma condição de significado. Só o novo realmente diria algo. E o novo não tem só uma definição negativa. A sua positividade é a justiça social.

Os anos 60 na França são um marco na história dessa linha de pensamento, e seu âmbito é muitas vezes o da linguagem. Numa aula magistral sobre a destruição da Biblioteca de Alexandria, o professor Christophe Roco menciona de passagem a fecundidade da reflexão dessa época como algo comparável às filosofias de Platão e Aristóteles na Antiguidade. Depois que Sartre havia dito que não acreditar em Deus seria um tanto incômodo para quem quisesse preservar a moral, mas que isso era um fato inafastável, aparece uma geração de pensadores que, atolados nesse deserto, imaginam um oásis. Algo parecido tinha de fato acontecido na Grécia na medida em que a religião oficial tinha sido desacreditada. A interpretação que Derrida, um dos humanistas daqueles anos, faz de Voltaire mostra, no entanto, que havia uma solução de continuidade no do movimento para fora do círculo de influência do sagrado. "Quando trata de tolerância, o Dicionário Filosófico de Voltaire reserva à religião cristã um privilégio duplo." As prerrogativas são os elogios devidos àqueles primeiros cristãos que tinham dado a vida pela tolerância e pelo respeito. Essas ideias e outras como essas são o sempre novo.

Entre este Voltaire e o próprio Derrida, no entanto, havia o abismo de um escândalo. Quando isso acontece, há uma volta à violência de que a religião até então havia poupado a sociedade. Trata-se de mais um impulso irracional contra algo inofensivo. No caso de Derrida, a sua vítima é o conceito. Como bem nota Habermas, "o trabalho rebelde da desconstrução [...] tem o interesse principal de inverter o primado da lógica sobre a retórica." Isso, no entanto, não acontece só pelo sádico prazer de destruir, mas sim em nome do único que sobrava no deserto: a metamorfose indefinida do ser humano, que teria vindo literalmente do nada e não iria a nenhum lugar em particular. Assim é coerente que, não reconhecendo nada de fixo no homem, essa filosofia afirme o primado da retórica sobre um discurso mais científico. Seria injusto, no entanto, dar a impressão de que Derrida se acha um messias. Ele mesmo defende uma "messianidade sem o Messias".

Isso, porém, não é perseguição, mas tão somente uma indiferença um tanto afetada. A vantagem de não ser lógico é que não há um inimigo definido. Derrida não é contra nada que não seja a injustiça presente, segundo ele, em qualquer ordem, como se ela não estivesse presente - em dose mais do que suficiente - mais perto do que imaginamos.  E essa guerra é empreendida também em nome do que ele afirma ser uma loucura: o perdão. De fato, se não há pecado pessoal, não há nenhum interesse pessoal em perdoar, e esquecer uma ofensa contra si é tão gratuito quanto descobrir, um dia, que se sofre de Alzheimer. "Com a transformação do pecado em culpa, e da violação dos mandamentos divinos em transgressão de leis humanas, algo certamente se perdeu."*  O que exatamente se perdeu pode ser entendido com um fato recente da política brasileira.

Sérgio Moro condenou pessoas que haviam transgredido as leis. Se, no entanto, ele fosse um discípulo ideal de Derrida e tivesse perdoado a todos os criminosos, ainda que esses dissessem que iriam fazer tudo de novo na primeira oportunidade, haveria aí um perdão dionisíaco, incondicional, ilógico, como nunca antes se viu. Quando a misericórdia é uma loucura, a civilização vira um hospício. Essas e outras messianidades, no entanto, são melhores do que qualquer nihilismo. A vaca voltou do brejo!

* Essas e outras citações são tiradas do artigo "La Secularización de la Cultura Contemporánea", de Massimo Borghesi.

domingo, 7 de agosto de 2016

Um Limite da Boa Educação



Há certos assuntos que, ainda que necessários, devem ser tratados com uma máscara anticontágio. Flávio Morgenstern, resistindo à tentação da indiferença, já disse quase tudo. O tratamento midiático do caso Biel é estranho porque, à primeira vista, parece ser algo bem intencionado. No entanto, é um delito em que, como diria Girard, a mão direita não sabe o que faz a esquerda. E o que a esquerda faz é relatar o assunto como se fosse um caso pertinente somente às leis promulgadas pelo Senado Federal, depois de um longo processo e infinitas discussões técnicas, e não algo bem mais simples.

Biel, depois de assediar uma jornalista, perdeu a fama. Saber qual foi a razão última pela qual o funkeiro não é mais uma celebridade é algo que ultrapassa em muito a capacidade de um blogue. No entanto, uma coisa é facilmente identificável em meio às notícias sobre o tema. Biel dividia as pessoas em duas categorias: as interessantes e as desinteressantes. Distinguir um cavalo de outro é algo que pode ser feito sem maiores problemas, mas mexer com seres humanos e sair impune não é tão fácil. E, ó ironia!, foi alguém tida por ele como interessante que lhe mostrou isso.

A indignação geral da nação, no entanto, é um pouco exagerada. Se a carreira de Biel tivesse sido sacrificada em troca do apreço pelo pudor, qualquer hipérbole estaria justificada. No entanto, não foi assim. Além disso, há uma atenuante silenciada. Quando disseram ao Biel  que ele podia bancar o bom selvagem, ele acreditou por pura inocência. Quem, desde a década de setenta ousa dizer publicamente que sexo pode ser uma tragédia? Ninguém. A próxima vítima, obviamente, será a educação, como se essa pudesse resolver o problema. Podem dizer que, no final das contas, era o professor ou o pai de Biel que tinham o dever de lhe ensinar as regras de como se comportar com a elite intelectual do país, que, no momento, faz e desfaz a opinião pública segundo a agenda do gênero. A tática do discurso é claramente dar peso à vontade individual e tirar importância da ética. Assim, o professor de Biel deveria ter explicado que o consentimento é tudo. A educação, porém, não é o remédio.

A vítima principal do caso é uma jornalista, mulher e, se não fosse pela lei, indefesa. O que mais impressiona nas suas falas é que não foi a falta contra a virtude do pudor a razão pela qual ela se sentiu ofendida. À sem-vergonhice de Biel ela poderia, tranquilamente, ter oposto uma defesa do respeito mandando-o por exemplo voltar para o chiqueiro de onde escapou ou qualquer outra resposta nesse estilo. No entanto, ela é um vítima completamente ingênua, como mais um bom selvagem que ignora o pecado original. De fato, a senhorita admitiu que, antes do assédio, foi simpática com seu algoz. A julgar pelo desfecho, ou ela de fato não queria nada além de uma entrevista ou ela se arrependeu logo que viu de perto a fera. Portanto, o único motivo pelo qual ela foi simpática é justamente a boa educação. Ser civilizado às vezes facilita a invasão dos bárbaros.