sábado, 11 de outubro de 2014

A Tolerância de Olhos Abertos

A justiça costuma ser simbolizada como uma mulher com os olhos vendados. Seria uma falsidade afirmar que a justiça brasileira, fazendo jus à simbologia, tem tomado as suas decisões no escuro. No entanto, é fato que quando alguém lá dentro resolve abrir os olhos, como fez Joaquim Barbosa, e dizer claramente qual é a sua opinião, muitos reagem como se um ídolo sagrado tivesse sido profanado. É como se estátua tivesse levado a mão ao rosto, tirado a venda e piscado aos adoradores da cegueira. Eles gritaram espavoridos para que ninguém mais ouvisse qual seria a sentença. Mas o assunto de hoje não é propriamente a justiça brasileira, mas uma ideia perniciosa que vem voando desde o Velho Mundo e aterrisa em terras tupiniquins. Os ingleses parecem querer que não só a velha justiça, mas também a nova tolerância seja cega.
A pergunta a que a The Economist responde negativamente essa semana é: as escolas religiosas podem adotar como requisito para contratação de um professor que ele confesse a mesma fé da instituição? Ora, não há nada de estranho nisso, visto que qualquer empresa tem sua filosofia, e qualquer um que não concorde com ela cedo ou tarde terá problemas para se manter no emprego. A diferença é que nos casos onde a confissão religiosa é testada de antemão, a situação é mais clara. Não há instituição digna do nome que não tenha um modo próprio de ver a vida. Se ela é capaz de enunciá-lo em tão poucas palavras quanto as que contém, por exemplo, o Símbolo dos Apóstolos, melhor ainda. Isso  não é intolerância, como alguns prontos a repetirem clichês dizem. É exatamente o oposto. É simplesmente tolerar que os pais possam dar a seus filhos a educação que bem entenderem. Os contrários a isso são sempre pessoas práticas que não percebem a importância de uma filosofia explícita de vida. Para eles, como tanto faz se alguém tem esta ou aquela teoria, o critério parece discriminatório no sentido ruim da palavra. Porque, é claro, discriminação tem dois significados. Um é traçar uma linha que divida os homens entre bons e maus, aptos e inaptos, dignos e indignos com base em algo que não tem a nada a ver com bondade, aptidão ou dignidade, por exemplo, a côr da pele. O que, porém, uma escola, digamos, católica, faz ao exigir de seus professores uma profissão de fé e uma conduta minimamente compatível com essa fé é distinguir ideias. E essa discriminação é muito boa.
É aliás um requisito para que uma sociedade seja plural. Porém, se as ideias não podem ser transmitidas aos outros no estado o mais puro possível, insisitir que a sociedade precisa de pluralidade não passa de uma vã repetição. O que os partidários da tolerância cega querem dizer é isso: As crianças não precisam de uma filosofia de vida. A missão da escola é simplesmente torná-las aptas a ingressar no mercado de trabalho e  contribuir assim para o bem comum. Como o trabalho pode ser desempenhado sem que alguém tenha uma teoria sobre qual é seu significado para si, para os outros e para Deus (que, diz o pedante, talvez nem exista), a exigiência de confissão religiosa por parte dos professores é um arbítrio da direção da escola. Essa é uma teoria perfeitamente aceitável, desde que a contrária a ela também o seja.
Há, ainda, dentre os partidários da tolerância cega os que não instrumentalizam a educação vendo-a como uma mera preparação para o trabalho. Eles julgam, e estão certos, que a escola é um bem em si. O que esses querem dizer ao falar de discrinimação é isso: A função do colégio é formar pessoas eclarecidas. Alguém será tão mais esclarecido quanto for maior a diversidade de opiniões com que tenha contato. Logo, a escola que tenha os professores mais diferentes poderá proporcionar a melhor educação para seus filhos. Essa teoria é verdadeiramente teórica. Mas não é possível impingi-la aos pais das crianças, que podem muito bem achar interessante que seus filhos, antes de entrar em contato com mil filosofias diferentes, tenham um critério seguro para julgá-las. O pai que quer ensinar ao filho o seu modo de ver a vida é como o pai de Hamlet, que lhe dá um sentido para a existência. O  genitor que, ao invés disso, quer colocar o filho em contato com o maior número possível de opiniões, termina fazendo dele um Laertes, que não aprendeu de seu pai senão a como se portar  no mundo como alguém bem educado no sentido ruim da palavra, isto é, como alguém que é inofensivo por ser insosso.  No final, o único pensamento do infeliz será que todas as filosofias estão certas. Mas, se é assim, então a afirmação que só uma filosofia de vida é certa também é verdadeira. E o fato é que é assim mesmo. O próprio Cícero, que era um liberal avant-la-lettre, percebeu que a abertura de mente pode até ser útil como método, mas não é coerente como filosofia. Usar a cabeça é discriminar o que é verdadeiro do que é falso de uma vez por todas.

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