domingo, 20 de março de 2016

O Milagre do Trem

O Professor Gerardo Furtado  tem duas opiniões acerca desse costume imemorial que é a conversa fiada. A primeira é que ela apenas manifesta o quão precário sempre foi o raciocínio humano. A segunda é que, como um bate-papo não admite argumentos de autoridade, o seu aumento à medida que o tempo passa levaria a uma maior confusão, que por sua vez traria consigo o emburrecimento de trocar o fato pelo achismo, e esse efeito se acumularia de geração em geração. É um ponto de vista um pouco estrábico. No entanto, valendo-se do poder do criador sobre as criaturas, ele interpreta as suas palavras e se adianta a dizer que seus dois olhos visam mesmo a um só foco. Assim, cabe a nós entender a unidade do oráculo gerardiano e desvendar o mistério de como a conversa fiada não deixa e talvez deixe a galera mais estúpida. Para Otto Lara Resende, um infatigável praticante do esporte na modalidade epistolar, jogar conversa fora era uma forma de literatura. De fato, um de seus destinatários atestava: “os amigos que tiveram o privilégio de receber as suas cartas julgam que o melhor do Otto estava na incontinência do espírito do missivista tanto quanto no fulgor da palavra e na comunicação direta desse que foi quem melhor soube conversar no país e no seu tempo.” Não que se propusesse isso como um fim imediato, mas a coisa se desenvolvia de tal modo que, para dizer o que queria, ele utilizava recursos que a musa só franqueia aos valentes que, assim, são alçados quase a contragosto ao estado da arte. O ponto decisivo, assim, é saber se a literatura - isto é, a experiência transformada em ficção - não contribui para o descobrimento de verdades tão verdadeiras quanto aquelas que o Prof. Gerardo descobre no seu Pasteur e quejandos. A evolução, embora doutos julguem ser uma dessas iluminações, é um disparate mais inverificável que todas as estórias de fantasmas juntas e, portanto, não pode ser a pedra-de-toque da questão. Da mesma maneira, a infinitude do universo é uma elucubração tão gigantesca que tampouco serve. Resta-nos ficar com algo que ninguém duvida ser muito científico e averiguar se ele tem alguma relação com a literatura: o método. Essa mania acadêmica, sem a qual qualquer cientista passaria muito má impressão, nada mais é do que uma tentativa ordenada de verificar uma hipótese. Dessa maneira, se alguém dentre os antigos tivesse a ousadia de não fazer nada e conjecturar que a terra é esférica, ele poderia sair por aí divulgando a sua informação e exigindo que as pessoas acreditassem na sua autoridade. Alguém, porém, sempre pode duvidar. Então, ele poderia mostrar, na lua, o corte arredondado. Se o que produzia a imagem era o nosso planeta, não haveria incertezas de que a razão estava com ele. O método ou caminho que o levou a tese poderia ser replicado por qualquer um, o que daria foros de consenso à sua opinião. Tudo isso, todavia, depende da suspicácia, uma faculdade que Otto, como bom mineiro, trazia do berço. Ciência, com efeito, é uma certa observação ativa do real. E para que dê algum resultado é necessário que se proponha a responder a uma pergunta bem delimitada. Isso, porém, não é possível se o que predomina é a ingenuidade de achar que tudo é assim ou assado porque é o que parece. Suspeitar, no entanto, que as aparências enganam é um expediente da imaginação. Otto, por exemplo, estando hospedado numa pensão belga, desconfiou que o líquido vendido dentro de uma garrafa de água mineral potável fosse, na verdade, tirada de um bica improvisada que, por um momento, só existiu na sua cabeça. Ele, então, marcou o frasco para verificar se, da próxima vez, seria o mesmo. Assim a pulga atrás da orelha seria confirmada, e surgiria a segurança de que o dono do estabelecimento ganharia dinheiro à força de passar a perna nos clientes. Se isso não é, exatamente, o que um biólogo faz em seu laboratório, há uma semelhança inegável. Ambos, munidos de um palpite, tem que arrumar um meio de constatar a sua procedência. Existe, todavia, algo que é superior à ciência, embora não tenha o atributo divino da verificação laboratorial. Quando, num acidente ferroviário que aconteceu próximo de Barra do Piraí, vários passageiros morreram, mas Otto sobreviveu, ele não diz expressamente que isso foi por milagre. Os mineiros, por um excesso de prudência campesina, desconfiam que o acaso também possa existir. No entanto, ele deixa consignado que invocou a Virgem Maria. Que a vida humana não dependa de Deus, mas só da precariedade de invenções como esses e outros sistemas de transporte é algo tão exageradamente trágico que qualquer um afirmaria ser essa hipótese tão real quanto um sonho ruim. No entanto, alguns adoradores cegos da Nature imaginam isso e acham estar com a verdade só porque não estudaram filosofia o suficiente para discernir onde começa e termina a autoridade dos colegas do Professor Gerardo. Ela começa e termina no trem descarrilhado, e é tão certa e segura quanto uma caveira.









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