sábado, 28 de maio de 2016

O Preço do Gosto



A Arcádia era uma terra muito longínqua, onde os pastores, que nunca precisaram da civilização, moravam. Nela, não havia espadas, nem arado, nem a experiência de qualquer conflito. Todos cuidavam de suas ovelhas. Como, porém, a monotonia delas cansasse algum racionalista de antanho, foi necessário que se inventasse a flauta como distração. Este foi o começo de uma tragédia, porque se antes as relações eram simples -  os frutos eram colhidos das árvores e a carne era fornecida pelos animais -, agora o doce instrumento precisava ter um preço. A partir daí surgiu a cidade, em que não há só pessoas, mas também a compensação do comércio. Quem tocou a flauta quis receber um um salário, que, todavia, não é sempre necessário.

No governo, de fato, o princípio da compensação é aplicado de maneira diferente. Se um carpinteiro não produz nada, ele não tem o que compensar. Um presidente, por outro lado, se é prudente, ainda que não faça nada de concreto, merece alguma contrapartida. Além disso, o princípio opera não só na remuneração dos vereadores e quejandos, mas também na sucessão do governo. Ter o poder é algo que, por imitação, todos desejam, mas ele se torna ineficaz se não há quem obedeça. Portanto, o melhor é que todos, em algum momento, ditem os rumos da sociedade.  O pré-requisito é que estejam dispostos a sacrificar os seus interesses. Do contrário, a cidade se transformaria numa oligarquia ou mesmo numa tirania.

Nosso poder, no nível animal, manifestava-se na posse de um território dividido entre todos e não mudou muito. O interessante, porém, é que a coisa comum nem sempre é útil. Os macacos, por exemplo, dividem não só a área onde vivem, mas também a árvore onde tacam as pedras, o que talvez seja um hábito hereditário de algum sacrifício pacificador. Esse bode expiatório, que seria simbólico se houvesse referencialidade múltipla, também é uma espécie de compensação, porque vítima igual ao agressor desaparece do plano fático, uma ausência particularmente louvável. 

O princípio da compensação, portanto, pode ser definido como a origem do processo de diferenciação do trabalho em várias guildas. Se há um registro público, também é necessário que haja quem o leia e informe algum herói capaz de agir e que haja quem obedeça. Há, no entanto, um ponto em que a analogia, passando pela  memória, a vontade e a decisão, não pode ir adiante. O bombeamento do sangue, que distribui oxigênio, não pode ser realizado somente por quem detém o poder. Do contrário, se o espírito soprado desde o Ministério da Educação for um veneno, a unidade pode até existir, mas ela não vale nada. É necessário que haja financiamento privado de fundações para que o totalitarismo não tenha chance e para que a cultura geral, requisito básico para qualquer tarefa que não seja esfregar o chão, seja difundida sem muito viés ideológico.

Até aqui, não há a menor necessidade de dinheiro, já que para fazer um intelectual trabalhar basta uma cerveja. O salário só é indispensável na medida em que a liberdade é possível. Se todos os produtos são iguais, não há por quê ficar perplexo entre um sabonete Dove e um Monange, cujas diferenças reais ninguém sabe. O salário, no entanto, é um meio de evitar a semelhança de desejos que, se muito intensa, gera um certo desconforto. A coisa fica clara ao considerarmos a variação das arquiteturas. Um bem espalhado por toda a sociedade deixa de ser atraente. Surge, então, a necessidade de compensar a sua falta por um algo diferente, o que só é possível se houver a liberdade subcriativa e o correspondente financiamento. O capitalismo é o preço insubstituível do gosto.  

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