sábado, 7 de janeiro de 2017

Sobrevivendo em Meio às Exigências Necessárias

"A arte da invisibilidade precisa ser aprendida antes da arte da visibilidade. A maioria das pessoas compreende essa lição do jeito mais difícil." Jim Grote e John McGeeney, empresários e autores de Espertos como Serpentes - Manual de Sobrevivência no Mercado de Trabalho.



Não devemos ter raiva de nossas cozinheiras. As coitadas, se são competentes, têm mesmo que parecer muito sérias e exigentes. Elas não admitem que mesmo o melhor dos meninos, aquele que sempre faz bem o dever de casa, seja premiado antes do almoço com uma uva. Sem dúvida, essa afirmação parece tirada do nada. No entanto, ela tem base na teoria do bode expiatório. O seu âmbito é uma crise em que há um bem que não pode ser compartilhado.  O primeiro ponto é que as crianças, ainda que não o saibam, têm um desejo mimético. Dito de outra maneira, se um primeiro prova o fruto da videira, todos os demais vão sentir fome, ainda que não façam jus à recompensa. Não há, como sabemos, uma proporção entre o gosto pela iguaria e a quantidade na bandeja. Como o desejo não deixa de ser sentido como necessário por ser mimético, eles tomariam como uma injustiça o não receberem o suficiente do aperitivo. O desfecho já é um tanto arbitrário. Pode acontecer, então, que as crianças briguem entre si, ou que uma boa cozinheira seja o alvo da indignação pueril. De qualquer maneira, há a possibilidade de uma tragédia quotidiana que, embora fosse um fato, não seria tão verdadeira quanto a melhor ficção.

Além disso, o desejo aumenta se foi proibido. Isso faz com que a espera pela comida a torne mais apetitosa. Assim como essas boas senhoras, as instituições, para sobreviver num mercado competitivo, tem que fazer as suas vítimas. Esse fator, por sua vez, promove que ela seja vista como um modelo da melhor das excelências: a inacessível. É difícil encontrar uma propaganda mais eficaz para conseguir empregados saudáveis e bem dispostos. Portanto, ainda que todas reuniões metafísicas deixassem de falar do sacrifício, ele por isso mesmo estaria mais presente. Para que talvez algum leitor finalmente ache que não é inútil vir até aqui, vão aí algumas dicas sobre como não ser um dos que têm a triste razão de reclamar.

As empresas em geral rejeitam quem tenha um problema teórico com a autoridade. Se você brigou com seu chefe anterior e ainda acha que estava certo, isso não interessa. Se, na prática, você não dá resultado, não adianta se justificar. O melhor é assumir a culpa com uma sugestão objetiva de melhora. Desabafe com um amigo, mas não com um mero colega nem na entrevista do próximo emprego. Aí o jeito é ser sincero e não se desesperar. As boas empresas tampouco admitem quem é muito competente na área técnica, sabe disso e acha, portanto, que estaria apto a um cargo de gerência de pessoas. Em regra, não está, e a exceção muito notória também tende a ser expulsa. O reconhecimento não é uma questão só de mérito.

As bancas de advocacia não aceitam os escrupulosos não positivistas. Se um rapaz é estudioso, mas acredita num direito natural que não é tomista, ele quiçá considere que o divórcio não é defensável nem para os ateus. No entanto, quem não é defensável talvez seja ele. O caminho é desistir de argumentar para o juiz que segue a jurisprudência da maioria, virar padre se houver vocação ou ir atuar junto a Cúria, onde estão os que entendem os pressupostos do assunto.

As universidades são um problema mais delicado. Antes de mais nada, vamos distinguir as humanidades do resto, que eu não conheço nem de ouvir falar. Naquelas, se há uma metodologia própria do departamento, não adianta ter como referência um intelectual favorito se ele for ignorado.
Não importa, a rigor, se as suas ideias não foram logicamente refutadas. Ademais, não convém no começo fazer uma pesquisa com mistura de vários assuntos. Isso, em alguns círculos fechados, não é sequer concebível. A interdisciplinariedade é o topo da pirâmide, o que significa que pode até ser feita, mas seus praticantes tem que ser em número muito reduzido. A cruz da consciência, porém, está na ideologia, sem a qual é impossível viver. Não ter vergonha de alardeá-la, por mais fundada no senso comum que seja, é abrir o flanco para uma acusação de instrumentalizar o que para alguns é o sindicato mais imprescindível. Ou o estudante abre mão de suas convicções pessoais, ou abrirão mão dele, por mais genial que seja. Dar a vida pelas palavras certas, no entanto, ainda é dar um exemplo de honestidade. René Girard agiu assim, teve que responder com diretas a indiretas e depois entrou numa glória que não é só do outro mundo.

A Academia de Letras não acolhe quem não tenha feito do seu meio de vida a escrita e não seja o Sarney ou o Ivo Pitanguy. Parece improvável começar um profissional liberal e, quando chegar a aposentadoria, ainda ter o tempo para se tornar um mestre do estilo. Desde algum tempo no Brasil, cultura de fato é uma profissão. No entanto, também nessas plagas sucesso ainda é uma soma de talento e sorte. Ao mesmo tempo, não adianta só ler e imitar o que há de mais belo sem ter uma visão própria a levar ao grande diálogo. Só macaqueação não é arte ou, como diria um amigo meu, a musa não tá só na praia. Ela habita também o escritório.

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