domingo, 29 de janeiro de 2017

Filosofia e Vida em Michel Serres



Um dos momentos mais agradáveis na vida é aquele gasto com os amigos. Um dos meios de se cultivar essa planta sem a qual o jardim da existência não teria tanta graça é o contato periódico. Isso, no entanto, pressupõe uma ambiente calmo onde não haja barulho e se possa ouvir as palavras do outro sem problema. Muitas vezes, esses lugares são fáceis de encontrar, mas em localidades onde a guerra aterroriza não. E há alguns que afirmam que a violência está sempre mais próxima do que imaginamos. Talvez não convenha fechar os ouvidos a seus alertas.

Um desses profetas modernos é René Girard. Uma frase impossível de imaginar na boca dele é algo como: a paz reina hoje. Dentro do seu modo de ver, a falsidade com que a ordem é conquistada faz com que a situação seja sempre precária. O sol brilha, o vento sopra suave e as flores desabrocham... mas nós estamos sempre a um triz de nos esgoelar uns aos outros. E sem que haja nenhuma razão para isso. Não é difícil encontrar um exemplo dessa tensão. Outro dia, um rapaz, que ainda não sou digno de chamar de meu amigo, teve que deixar de estudar para ser taxista. Se alguém ainda não acha que isso é uma violência, considere isso: segundo fontes fidedignas, ele teve que abandonar os livros por conta de uma lei que prescreve ser a universidade autônoma. Portanto, um juiz togado não poderia afirmar nada acerca da justiça ou injustiça de um edital aprovado pelo reitor, que é ocupado o suficiente para se equivocar e nem perceber. Em outras palavras, assim como algumas favelas promulgam as suas regras próprias, alguns órgãos públicos ditariam as suas próprias leis.  A diferença que torna a universidade mais atraente é que nela o domínio é mais consensual. De qualquer maneira, esse rapaz, se tem algum sangue nas veias, deve ficar indignado com o absurdo que é a pressuposição que torna indiscutíveis algumas decisões de funcionários públicos. Da última vez em que o vi, porém, ele era como um vulcão ainda adormecido.

Talvez a sua ira nunca irrompa. A ilusão pela qual se considera que nesse caso tudo estaria bem é a seguinte: a decisão é boa. Embora isso não seja nunca o fato, todos fingimos acreditar nessa falácia moral porque do contrário o caos tornaria a vida um inferno. Se o poder não fosse respeitado, não haveria uma instância capaz de dirimir os conflitos que costumam acontecer. A serenidade verdadeira, no entanto, não decorre desse engano. Pelo contrário, o cristianismo mostra que quiçá aquele contra quem a ordem é esgrimida seja inocente. A rigor, o engano é hoje muito mais difícil. Essa revelação tem duas consequências. Por um lado, ela fomenta um desrespeito por tudo o que é só humano. Por outro - e esse parece ser o modo como os santos a entendem - ela é uma ótima teoria que arranca as raízes da violência: a justiça humana pura e simples é necessária, mas há um bem que a ultrapassa e mais do que compensa as suas deficiências. Não há menor desculpa para o ressentimento.

A alma de Michel Serres, que consta já ter sido professor de um curso na USP, parece também um mar calmo e livre de maiores rancores. Ele era amigo de René Girard e, provavelmente, quando a discussão surgia, Serres era quem tinha que se controlar e levar o assunto para lugares mais amenos. Na virada do ano, um jornalista quis saber dele se em 2016 existiu paz na Europa. Não é necessário lembrar o martírio e os ataques terroristas. No entanto, o filósofo, com uma cara de pau muito simpática, diz que sim, a paz reinou em 2016. A explicação é que a sensação de guerra é só uma subjetividade aumentada pela mídia. René Girard tinha um conceito mais extenso da violência. As impressões também têm consequências.

Uma delas está presente na vida do próprio Serres. Quando, por conta de ideologias, a Segunda Guerra estourou, ele era uma criança indefesa que via e retinha tudo. Ele sobreviveu, mas a experiência lhe deixou uma marca. Permaneceu nele um asco por todos os adultos que desprezavam a paz. Essa parte de sua biografia é contada por ele mesmo no livro da entrevista dada a Bruno Latour. O que não está presente de maneira clara lá é como ele resolveu esse impasse, por que caminho interior ele conquistou a vitória, como, afinal de contas, o ódio foi destruído.

Mas, de certo modo, a coisa está latente numa distinção percebida por Serres adulto entre a história da ciência e abordagem histórica na epistemologia. Não é difícil de entender: quando um historiador da ciência estuda o que havia de falso nos antigos, ele desconsidera a relação entre teoria e verdade; quando, porém, um epistemólogo estuda um erro passado, ele faz o juízo de que está errado e busca as condições metodológicas que evitariam o equívoco.

Assim como os desvios dos modelos científicos, o asco contra os mais velhos é também uma espécie de ignorância, embora resida somente numa pessoa. Se ela for considerada apenas sob a perspectiva histórica, não há nada a se aprender. Mas se o matiz epistemológico for acrescentado, percebemos que o erro só existe porque a criança tem que se achar o centro do mundo. Não conhecendo nada, ela não se sente atraída para fora de si. Desde esse ponto de vista limitado, a violência era incompreensível para o pequeno Serres. Não havia a menor explicação para pegar em armas. O modo de evitar a falsa percepção é reconhecer que a melhor posição da inteligência é sobre um monte de onde se contempla que todas as guerras tendem a se aniquilar. Elas são, de fato, baseadas na promessa falsa de uma nova ordem. Aqueles que sobrarem herdarão a terra.

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