sábado, 23 de maio de 2015

O Palácio da Mooca

O anti-herói tem mais de de vinte e sete séculos de existência, embora os pedantes achem que, ao escreverem sobre drogados, inventam a roda. Aquiles, por exemplo, ao quebrar a unidade do exército grego, comporta-se com uma vilania, que é o espelho perfeito da malandragem perpetrada por Ulisses no final da guerra. Enquanto o primeiro trai os gregos, dando-lhes de presente o Cavalo de Tróia da sua força física desgovernada, o príncipe de Ítaca faz o mesmo, mas contra o oponente até então imperecível. Odisseu é o homem cuja prudência deu a galardão aos gregos, e a Aquiles o vilão que, tendo matado Heitor, negar-lhe-ia até a sepultura se não Príamo não fosse lhe pedir o corpo. A virtude de Odisseu, no entanto, não se resumia à estratégia militar, mas se a sua terra natal, que ele governava com mão tão doce a ponto de permitir que sua esposa ficasse à frente de todos os seus negócios. A mulher, com efeito, é o melhor amigo do homem na defesa de seu patrimônio, desde que ela não seja a melhor amiga do cartão de crédito.
A maior riqueza de Odisseu, todavia, não eram as suas terras, onde as vinhas cresciam até derramarem abundantemente o vinho nos cálices servidos em dia de festa. Se Penélope tem uma incumbência importante, essa é a tarefa de educar Telêmaco em meio a príncipes que eram tão boa companhia de sua família quanto os parasitas o são de carvalho. A educação, dizem alguns cuja sobrancelha erguida demonstra que fazem mais força para pensar do que o Maguila para esbofetear, é imprescindível ao desenvolvimento do homem. Isso seria verdade se a educação pudesse ser destruída pelos amigos que um filho tem e seria melhor que não tivesse. Odisseu, no entanto, tem, ao lado das piores exemplos, a lição mais preciosa que alguém poderia conquistar nessa vida. Quando Odisseu retorna à ilha, ele não se preocupa com o rosto de Penélope, que as rugas enfeiavam, mas sim com manutenção de sua propriedade, que a desfaçatez dos príncipes havia tornado impossível. Foi isso que o motivou a abandonar a prudência que havia sido a vitória dos gregos para dar vazão a uma ira muito semelhante a que dá início ao entrevero de Aquiles. Ambos tem seus momentos de anti-heroísmo, mas no centro que une as duas estórias está a vitória de um povo e a conciliação do rei vencido com o assassino de seu filho.
A maior riqueza de Ulisses, materialmente, era o solo de Ítaca. Os mercados financeiros da época – que são velhos e gastos como todo o negócio o que faz da bufunfa o seu eixo exclusivo – somente teriam o que trocar se houvesse plantações e colheitas. No entanto, mais do que arremeter contra os príncipes porque eles não tinham cuidado de seus bens, a ira de Ulisses os destrói porque eles achavam que o seu maior seria tão venal quanto o produto do trabalho de seus escravos. O trabalho produz riqueza, mas ela vale tanto quanto valer o trabalhador, e este é o primeiro a reconhecer que as riquezas conseguidas sem esforço são as mais saborosas. Como o ladrão, ele sabe que o fruto é tanto melhor quanto mais proibido for. A diferença é que, enquanto o trabalhador se ocupa disso durante oito horas por dia, o ladrão usa as oito horas da noite.
Essa é a razão por que multiplicar as leis contra corrupção não levaria o Brasil a lugar nenhum. O melhor é deixá-la correr solta, aplaudindo os jornalistas se refestelam a cada descoberta nova de um ovo podre. O fato é que, embora eu admire muito aqueles que não leem jornais porque lá só há os cadáveres da moralidade pública, não consigo deixar de admirar o trabalho do coveiro. Há malandragem por trás do que vem fazendo o Janot, e é das heroicas: se o único indício contra o Eduardo Cunha é o cumprimento de seu dever de parlamentar de investigar os que contratam com o Planalto, então ele só foi acusado porque o contrário seria a dar à propaganda petista o argumento de perseguição política. A denúncia sem fundamento de um opositor do PT é a garantia de imparcialidade da investigação.
Toda malandragem complicada, no entanto, é uma perda de tempo. A única coisa que um malandro ao fim e ao cabo consegue é se livrar de ter a sua reputação manchada. Reputações, no entanto, são vendidas nas bancas de jornais por dois mirréis, e muito gente honesta é incluída no saco da corrupção somente porque estava na hora e no lugar errados. Vários empregados das construtoras, como os soldados do exército grego, sofrem com a traição de Aquiles. No entanto, se um empregado teve relações escusas com o mundo da política, é bem possível que tenha sido somente para garantir à sua Penélope e ao seu Telêmaco um palácio na Mooca.



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