quarta-feira, 22 de julho de 2015

A Tragédia da Teoria

É sempre uma posição a ingrata a do árbitro autonomeado. Se, num jogo de futebol, o juiz, designado por alguém imparcial, já padece sob as calúnias infundadas sobre a honestidade de sua mãe, aquele que quisesse apitar o jogo por vontade própria, com mais razão seria vítima da pouca caridade alheia. No entanto, um empresário, por exemplo, que resolvesse investigar as relações familiares de seus empregados, buscando aí um vício que prejudicaria o o trabalho dele, ainda estaria no âmbito no profissionalismo. E é exatamente aí onde muitos homens de negócios erram e burocratas acertam. Porque, se na sociedade não houvesse um certo intrometimento na vida alheia, sempre haveria uma desculpa para que a tolerância fosse posta de lado. Não haveria tolerência, mas somente indiferença. Quando, então, o governo proíbe o jogo do bicho, isso não é uma intervenção indevida. É, antes, aplicação prática de uma teoria da qual ninguém discorda: se a riqueza é produto do mero acaso, ela também fortuitamente pode sair de uma mão e ir para outra. E a fortuna, que dá hoje a um o que antes era do outro, não passa de uma ladra que sempre comete o crime perfeito.

Fortuna

No debate público brasileiro, há hoje dois partidos: o dos que acham que mercado é quem premia e castiga e o dos que acham que a fortuna pode ser reduzida à vontade humana. O mercado, todavia, é algo muito parecida com a fortuna. Paulo Coelho, por exemplo, é um literato muito inferior a Diogo Mainardi. E, no entanto, vende muito mais livros. Do mesmo modo, os médicos são muito mais úteis à sociedade do que alguns magnatas que estão por trás de grandes empreendimentos ingovernáveis. A conciliação entre essas duas partes só é possível a partir dos fatos, que nínguém, salvo os idealistas, contestam. E, no entanto, é exatamente aí que os idealistas estão certos e os homens práticos divididos em partidos estão errados. Um dos axiomas desses filósofos herdeiros de Descartes é que a descrição da sociedade é tão mais precisa quanto mais matemática for. A matemática, porém, não é tudo. Quanto vale um homem? Diogo Mainardi vale mais que Paulo Coelho, porque um pobre vale muito mais do que um homem rico. E Paulo Coelho vale mais que Diogo Mainaridi porque um literato não vale nada se não houver alguém a para lê-lo A lição, porém, que ninguém nunca aprenderá por completo é que a realidade, antes de aprendida por alguém, foi caprichosamente moldada por um sucessão incontável mas finita de causas.

A metafísica dos acidentes de trânsitos é um exemplo vivo de que a especulação sobre as causas finitas é infinita. Todo acidente nada mais é do que uma coincidência de finalidades. A coincidência, no entanto, é uma sorte, que é o apelido que os otimistas dão à fortuna. Nela há o encontro de duas verdades práticas conflitantes. É assim que um Hamlet, dirigindo pelas ruas de São Paulo, descobre que a via necessária para sua missão é aquela que está imediatamente à sua direita. Ele, porém, ao ter esta eureca, estava, como de costume, meditando sobre a vida da maneira menos prática impossível: entre uma faixa e outra. Entre ele o seu desiderato, havia um ônibus que só não carregava Paulo Coelho porque o mercado – e não há nada de errado nisto - lhe deu dinheiro suficiente para só andar de táxi. Se, no entanto, ele estivesse lá, pagando ao trocador a sua passagem, a freada do ônibus teria feito com que ele caísse e quebrasse a mão. Essa mão, que não vale nada nem para mim nem para ninguém, é muito apreciada pelo Paulo Coelho, que então seria tomado de uma ira justa contra Hamlet. Ambos, dentro de sua própria cabeça, estariam certos. A diferença é que Hamlet, sendo um herói, teria parado o carro e pensado sobre a sucessão finita de causas do acidente: a bondade de cumprir a própria missão, a pressa do motorista para chegar à garagem e a imprudência do passageiro, que, podendo estar sentado, estava de pé.  E Paulo Coelho só escreveria um livro pseudomístico sobre os poderes inefáveis da mão quebrada de um mago.

A circunspecção é o que salva Hamlet e Paulo Coelho. É preciso olhar para o todo antes de fazer o particular. Se, no debate público brasileiro, o todo, nas suas infintas formas, fosse levado em conta, ninguém se espantaria de descobrir na regulação da sociedade uma verdade prática inegável. E essa é a de que a garagem não é um fim último do homem, e que Paulo Coelho, Diogo Mainardi e os inúmeros Hamlets brasileiros se beneficiam muito de uma fortuna que, em vez de cometer o crime perfeito, provoca as melhores coincidências dando aos pobres o que é deles e aos meditabundos a possibilidade meditar na vida dentro de um táxi para que não atrapalhem os outros. Isso, porém, seria o ideal, que a prática talvez contradiga.

Nenhum comentário :

Postar um comentário