quarta-feira, 29 de junho de 2016

A Companhia dos Cães Solitários

"Para que mímese se torne completamente antagonística, o objeto tem que desaparecer." Girard.

O objeto nada mais é do que o foco da memória. Em casos extremos, ele nunca é completamente apreensível. No entanto, é possível conquistar uma acúmulo de indícios que redundem numa certeza. Do contrário, o inconsciente freudiano seria só uma mística de quinta categoria. Maquiavel não era consciente das consequências desastrosas de sua filosofia moral, e uma delas pode muito bem ter sido o idealismo alemão. Para efeitos da Tuba, esse pode ser definido como a identificação confusa entre a razão e o mundo. Hoje, por exemplo, vige a moda de que, fora da academia, é extremamente complicado dedicar-se aos livros.  Essa ideia, no entanto, não é completamente certa. Conheço gente que lê bem, mas nunca foi adestrada nos rigores uspianos, que até têm a sua utilidade mas não são imprescindíveis. Tomá-los por pressuposto impossibilitaria a cultura fora do quadrado acadêmico.

Na medida em que os fins justificam os meios, e o fim nada mais é do que um projeto ambíguo, qualquer besteira está justificada. No marxismo, como bem lembra o Olavão, a redução racionalista é prospectiva e acaba no exato oposto do paraíso do proletariado. Na poesia, as consequências não são tão graves. No entanto, há uma certa indisposição que, transformada em versos, é tão incompreensível quanto o erro político. Reclamar das canções que expressam sentimentos líricos faz terra arrasada de metade desse labor excelso das palavras que é a poesia.

De fato, um dos correspondentes da Tuba no Recife descobriu, num espólio abandonado, um manuscrito inédito que tudo indica ser uma emulação de "A Casa Vazia." Como não se trata da caligrafia do autor desta maravilha, Alberto da Cunha Melo, mas sim de uma letra mais clara, que às vezes era deixada para trás sem ter sido completada, alguns dizem que deve ser de um amigo mais velho, médico  e viúvo convicto, que também fazia uns versos bissextos e era bastante competitivo. Para ele, o poema em questão era um convite a abandonar o individualismo. Senão, vejamos:

 Poema nenhum, nunca mais,
 será um acontecimento:
 escrevemos cada vez mais
 para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.

Depois que sua esposa faleceu, o doutor tinha resolvido dedicar-se completamente ao trabalho e não ia a festas de nenhum tipo, o que Alberto não achava bom porque impossibilitava que ele encontrasse uma nova companheira. Quando o esculápio leu a "A Casa Vazia", achou primeiro, como vimos, que seu tema era a própria escrita, o que costuma ser chato. No entanto, perdida a objetividade, viu que era possível interpretá-lo trocando o referido usual do vocábulo "poema" pela arte de devolver a saúde aos doentes. Assim o "deserto particular" se transformava no seu tão louvado hospital, que para ele tinha sempre sido uma poesia cheia de transcendência. Alberto seria bem capaz dessas zombarias sofisticadas. Muito lógico e fulo da vida por, dentro do texto, ocupar o lugar do cão, o médico respondeu latindo assim:

Iracema nenhuma, nunca,
Será para mim uma princesa,
Nem roçará em minha nuca
para consolar essa tristeza.

Às lágrimas que choro agora
Basta um lenço... e vão-se embora.

Ser um Batista solitário,
Os cães dizem que é muito estranho,
Pois é do amor ir pareado.

Mas, noite e dia, há companhia,
Mesmo numa casa vazia.

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